Outras escritas
 

 
   

nosOtras[1]

reflexaocoletivaposcol@gmail.com

Caminhos percorridos e entrelaçados: do individual ao coletivo[2]

Caminos recorridos y entrelazados: de lo individual a lo colectivo

Taken and intertwined paths: from individual to collective

 

Resumo: Este artigo surge de um processo de reflexão e construção coletiva de conhecimento que empreendemos com o objetivo de refletir sobre os aprendizados significativos do primeiro ano de formação doutoral desde a nossa própria experiência, e que realizamos com apoio nos princípios da sistematização de experiências e da reflexividade dialógica. Num primeiro momento expomos como foi percorrido o nosso caminho, o processo metodológico e os princípios epistemológicos que foram o ponto de partida; em seguida, descrevemos as nossas memórias, os contextos que nos levaram à escolha do programa de doutoramento, bem como os momentos significativos do primeiro ano de formação. No último momento, expomos as tecituras, os aspectos que nos foram comuns e que emergiram dos relatos. Por fim, descrevemos os horizontes, as pistas que a reflexão coletiva nos lançou, tais como desafios éticos, políticos, pedagógicos para os processos de formação doutoral

Palavras chave: aprendizados, construção coletiva de conhecimento, formação doutoral, pós-colonialismos, reflexão coletiva.

 

Resumen: Este articulo surge de un proceso de reflexión e construcción colectiva de conocimiento que emprendimos con el objetivo de reflexionar acerca de los aprendizajes significativos del primer año de formación doctoral desde nuestra propia experiencia, orientados a partir los principios de la sistematización de experiencias e de reflexividad dialógica. En un primer momento exponemos como fue recorrido nuestro camino, el proceso metodológico y los principios epistemológicos como puntos de partida; posterior a esto describimos nuestras memorias, los contextos que nos llevaron a escoger el programa de doctorado, así como los momentos significativos del primer año de formación. En el último momento, describimos los tejidos, los aspectos que fueron comunes para nosotras y que emergieron de los relatos. Finalmente, describimos los horizontes, las pistas que la reflexión colectiva nos generó, los desafíos éticos, políticos y pedagógicos para los procesos de formación doctoral.

Palabras claves: aprendizajes, construcción colectiva de conocimiento, formación doctoral, pós-colonialismos, reflexión colectiva.

 

Abstract: This article is based on a process of collective knowledge construction made by a group of PhD students from the program in Post-Colonialism and Global Citizenship to reflect on the learnings of our first year of grad school. The reflection is based on our experience and is oriented by the principles of systematization of experiences and dialogic reflexibility. In this article, we first expose our journey, our path and methodological process and our epistemological starting point. Through our memories, we show the reasons that led us to choose this PhD program. Later, in the quilting we describe the common aspect of our stores. Finally, in the horizons, we provide the clues that this collective reflection brought, the ethical challenges and also some of the political and pedagogical answers and questions that arose throughout our PhD training process.

Keywords: collective knowledge construction, collective reflection, learning, PhD Training, post-colonialism.

 

Introdução

Fomos confinadas no dia 11 de março 2020 e foi-nos exigido que as nossas interações se restringissem aos meios digitais, de forma a nos protegermos e a protegermos as/os outras/os. Isto significou que, entre março e julho 2020, todas as nossas aulas do programa doutoral aconteceram em formato de vídeo-aulas. Reconhecemos que vivenciamos historicamente modelos de formação que direcionam as performances acadêmicas ocidentalizadas a lugares de profundo individualismo-Para nós, sem dúvida, a pandemia da COVID-19 intensificou esses processos de individualização, na medida que limitou as possibilidades de partilhas e contatos que a interação física nos espaços da sala de aula permitiam.

Se, por um lado, a modalidade virtual permitiu manter alguma estrutura e seguimento ao período letivo, por outro também significou para nós um desgaste físico e emocional muito maior no processo de aprendizagem. Nós, que estávamos habituadas/os a estar duas vezes por semana dentro da mesma sala, trocando experiências e afetos – ficamos reduzidas a interagir com o ecrã dos nossos computadores e a ver as/aos nossas/os compañeras/os aos quadradinhos, dentro de caixas herméticas e assépticas.

É no anterior contexto descrito que surge o trabalho de reflexão coletiva que apresentamos a seguir, no qual, sentimo-nos convocadas a participar por diversas motivações como: “o desafio de passar por um processo de reflexão coletiva depois de tanto tempo refletindo ´sozinha” (encontro 2); “la búsqueda de otras formas de hacer investigación y trabajo académico que no separe, sino que integre” (encontro 3).

Esta proposta de construção coletiva de conhecimento, principalmente se considerarmos o contexto em que foi experienciada, tem um significado muito profundo. É a reafirmação de que a aprendizagem também se faz do encontro e nunca será plena se estivermos sós. Neste trabalho, pretendemos mostrar como reconhecemos a importância de aprender com e que as/os nossas/os compañeras/os são parte desse conjunto com o qual aprendemos, são autoras e autores do nosso saber. Assim, propomo-nos compartilhar os diversos caminhos que significaram possibilidades, os vínculos, as reflexões e os sentimentos criados a partir desse contato. Partilharemos os momentos difíceis, as fraquezas, as dúvidas e as inquietações que se tornaram obstáculos e nos levaram a imaginar, negociar e construir alternativas para avançar naquilo a que nos propusemos. Narraremos também quais eram nossos desejos e até onde os executamos, descrevendo as restrições que estabeleceram(-nos) limites.

 

Caminhos

Preparação da caminhada

Entre o dia 13 de maio e 1 de julho, reunimos-nos uma vez por semana, durante 3h. O nosso primeiro encontro, centrou-se em explorar as nossas motivações para fazer um trabalho coletivo e o que imaginávamos que poderia ser: a possibilidade de propor um espaço pedagógico que pudesse ultrapassar as portas da sala de aula.

Neste espaço pedagógico não estábamos apenas construindo coletivamente conhecimento académico, estábamos também diagnosticando esse espaço em que habitamos, situando-nos, assim, nessa tensão política que é expressar que não nos contentamos com a forma como a academia pensa e executa a individualização do produtivismo científico. O desafio desta reflexão coletiva e do trabalho em grupo passou pela diversidade que o constitui, por transformar la coincidencia en convergências,  daí que outro desafio tenha sido gerar algo entre um grupo que livremente se decidiu unir e, também, sair das nossas caixinhas.

Para que pudéssemos trilhar este caminho de modo organizado e dinâmico, criamos alguns canais de comunicação e trabalho. Eles foram:

  1. una plataforma de comunicación en videochamada (para os encontros semanais);
  2. um grupo do WhatsApp para que compartilhar mensagens, motivarmos, dividir tarefas e organizar encontros vindouros;
  3. uma pasta compartilhada no Google Drive, em que colocamos material prévio aos encontros, as gravações dos encontros e os chats, as transcrições e a preparação do material escrito.

Este elemento foi reforçado pela escolha e desafio de escrever o trabalho na plataforma Google Docs, que permitiu o acesso e alteração ao texto por todas, de modo simultâneo. Num primeiro momento, as moderadoras dos encontros organizaram uma primeira versão do capítulo sobre o(s) encontro(s) que moderaram e, em um momento posterior, o texto passou para as compañeras de forma a fazerem as alterações que quisessem, incluindo elementos, excluindo outros, dando forma à nossa colcha de retalhos escrita

Ainda na perspectiva de melhor organizar nosso processo dividimos os encontros em quatro eixos. No primeiro eixo (encontros 1, 2 e 3) conversamos e debatemos sobre os nossos acordos de diálogo e sobre a fundamentação teórica, metodológica e epistemológica do nosso trabalho. O segundo eixo (encontros 4 e 5) tratou sobre a recuperação das experiências individuais. O terceiro eixo (encontros 6 e 7) concentrou-se em refletir conjuntamente sobre o que nos une e o que nos separa, para pensar como tecer coletivamente a nossa colcha de retalhos. Tivemos, ainda, a oportunidade de ter um oitavo encontro com o professor Alfredo Ghiso, educador popular, com quem refletimos - a partir das nossas inquietações e dúvidas - sobre as possibilidades potenciadas pelo nosso processo. Finalmente, o eixo final dos encontros (9 e 10) foi para coordenar as ideias finais, conclusões, recomendações, perguntas e revisão final do texto. Este  caminho terminou no dia 11 de julho de 2020 com a socialização virtual do trabalho coletivo, apresentando na aula final do seminário.

 

Aprendendo a caminhar em sintonia: nossos acordos de conversa

Uma das primeiras necessidades identificadas foi a criação de acordos para a conversa, em que todas participássemos e manifestássemos aquilo que parecia importante para que pudéssemos confiar, compartilhar e conversar juntas. Para tal, criamos um documento intitulado “Acordos para os encontros”,[3] em que cada uma acrescentou os pontos que considerava essenciais para serem acordados coletivamente e os quais foram discutidos no segundo encontro. Os acordos foram: 1. Circularidade da palavra; 2. Responsabilidad con el colectivo; 3. Confianza y cuidado; 4. Ritual de bienvenida al espacio; 5. Orientar e delimitar sem restringir e 6. Rotatividade de moderação. Um dos acordos que parece-nos importante destacar aquí, é o acordo do uso la linguagem, sendo este clave para percibir a forma da escrita que presentamos no presente artigo:

linguagem: nossos encontros foram concebidos para abarcar a pluralidade linguística do nosso coletivo e, conscencializarmo-nos e diminuir conscientemente as violências simbólicas encarnadas no uso da linguagem. Isto incluiu que a construção das guias metodológicas, que os materiais de apoio e que a escrita final fossem também pluri-linguísticos. O processo de revisão visou encontrar denominações comuns e problematizar o uso de determinadas expressões linguísticas, mas jamais aprisionar nossa colcha de retalhos belamente costurada através da imposição de uma única língua académica. Em relação ao género da linguagem que utilizamos, acordamos o uso do feminino genérico para referir-nos a nós próprias enquanto coletivo. Esta é uma decisão que, mais do que lógica, é política. Como um grupo de pessoas, entendemos, em primeiro lugar, que somos sete mulheres que se identificam como cis-género e uma pessoa que se identifica como homem cis-género, pelo que, numericamente, as pessoas que se identificam como mulheres-cis constituem a maioria (Conversações entre nosOtras, 2020).

 

A nossa bagagem

Nesta seção, partilharemos alguns dos fundamentos e problemas teóricos que foram pontos de partida para esse processo de reflexão e construção coletiva do conhecimento - a nossa bagagem, que trazemos da nossa aprendizagem académica e percurso de vida - que assumimos como uma posição epistemológica, ética e política entre elas. Num segundo momento, desenvolvemos algumas das problematizações que surgiram no momento reflexivo da fundamentação teórica e metodológica.

 

A reflexão coletiva e o diálogo

Inspiramo-nos nas orientações teóricas e metodológicas da sistematização de experiências (SE), que surge em 1980, nas organizações e movimentos da educação popular, a fim de refletir sobre o conhecimento já incorporado às práticas sociais cotidianas e pensar na construção de perspectivas e possibilidades da acciones futuras, questionando o lugar da ciência eurocêntrica e propor um processo como forma de pesquisa, produção de saber e conhecimento da prática (Mejía, 2010). As principais orientações que consideramos a partir do SE foram pensar e recriar a construção coletiva do conhecimento a partir da escuta, do diálogo e reflexão da experiência para pensar novos caminhos para a ação, deste modo optamos por nomear o processo empreendido como reflexão e construção coletiva do conhecimento, a partir da reflexividad dialógica (Ghiso, 2016: 257), a qual é mobilizada pela reconquista do poder de conhecer e construir conhecimento em solidariedade. Assumimos tambén intencionalmente, a ruptura com as dicotomias nas quais o conhecimento foi construído no Ocidente, que, constitui um pensamento abissal como um sistema de divisões visíveis e invisíveis que dividem a realidade em dois universos, “entre o verdadeiro e o falso, em detrimento de dois conhecimentos alternativos” (Santos, 2007: 4-5).

 

Subjetividades não neutras, autônomas e solidárias

Um segundo ponto de partida veio do reconhecimento de nós mesmas. Quem somos? Por que nos encontramos? Isto nos permitiu revelar que, aquelas que decidimos iniciar o processo de reflexão e construção coletiva, nos posicionamos como pessoas não neutras, situadas, com historicidade, autônomas, reflexivas, com corpos de experiências e vivências, e, portanto, de conhecimentos múltiplos, como pessoas desafiadas pela contexto e em busca de opções e possibilidades para influenciar na realidade. Reconhecemos o que é expresso por Boaventura de Sousa Santos, esse conhecimento com, como uma prática colaborativa  baseada na experiência como contexto, assumindo-a como um campo de conhecimento:

todo o conhecimento é corpóreo, não é aceitável que se conceda à experiência um estatuto inferior ao da teoria...A experiência é tanto a vida subjetiva da objetividade como a vida objetiva da subjetividade. Como gesto vivo, a experiência reúne, como um todo, tudo aquilo que a ciência divide, seja o corpo e alma, a razão e o sentimento as ideias e as emoções (Santos, 2018: 144-145).

Partimos também da ideia que o conhecimento não se constrói sozinho, sino como um processo relacional “con una situación, unos problemas, unos grupos o instituciones, unos saberes y conocimientos, con unas opciones políticas, económicas culturales” (Ghiso, 2006: 76). Situamo-nos assim, em perspectivas críticas, as quais assumiram o lugar do conhecimento como um campo em que as transformações são criadas e disputadas, nas quais a objetividade é questionada como neutralidade e pureza do pensamento livre de emoções e interesses, e assume-se mais a partir do lugar da reflexividade em que, através da interpretação crítica da prática, revelamos, conscientizamos e expomos nossos interesses, limites e possibilidades do conhecimento gerado.

 

A academia como lugar de transformação (?)

Uma das questões que teve muita força em nosso processo de reflexão foi pensar se a academia, se o programa de doutoramento, são espaços com possibilidades de emancipação em si e se podem contribuir para a transformação social: “acho que a gente está aqui na academia nesse espaço privilegiado não para mudar o mundo a partir desse lugar, mas talvez subsidiar ou apoiar algumas mudanças” (, 2020: 3).

Pensar uma academia emancipadora dentro de uma academia construída sobre projetos neoliberais do fim do século XX e início do século XXI dificulta a esperança de um dia ver-se a academia como espaço de transformação social. No entanto, a esperança alimenta-se dela própria e torna-se uma possibilidade precisamente por ainda existirem as novas gerações de investigadoras que acreditam na capacidade transformadora. Poderá, porém, acontecer o mesmo que no fórum social mundial, onde ficou evidente a separação entre movimentos sociais e acadêmicos que, de um modo ou de outro, teorizam a partir de perspectivas críticas, mas separados de realidades e interesses sociais.

Estas questões tensionantes levam-nos a problematizar e ampliar o debate sobre a descolonização da academia. Esta descolonização vai além de introduzir mudanças ousadas nos currículos e visibilizar outras histórias. É um descolonizar que passa por resgatar este próprio espaço, onde a disputa por uma produção de conhecimento que historicamente determinou a forma como muitas pessoas acadêmicas e não acadêmicos veem o próprio mundo. Esse resgate passa também por reconhecer que a universidade nunca foi apanágio do Norte Global. Que se o termo de universidade e academia surgem de facto na Europa e a partir dela se vulgarizam, a produção e propagação de conhecimento tem origens bem anteriores à experiência universitária/acadêmica europeia. Que por conseguinte, as primeiras universidades não nasceram na Europa e que, ainda hoje, mesmo no que se convencionou chamar “mundo ativista”, as universidades ditas “populares” têm sido espaços de intensa cultura de pesquisas e escritas sobre temáticas várias. A produção de conhecimento resultante das experiências vividas ou metafísicas, concretas ou abstratas, não é portanto, exclusivo do que chamamos academia ou universidade. Por outro lado, resgatar significa também dizer que, mesmo no Norte Global, a academia é também um espaço plural a disputar, porque a “comunidade epistêmica/acadêmica no seu interior ocupa um lugar de poder determinante na produção de saber sobre o outro e sobre os mundos outros, que não deve ser monopolizado, ‘totalizado’. Descolonizar a academia é des-ocidentalizar uma estrutura pensante que patenteia e monopoliza o direito a pensar e escrever “about them, but without them” (Nimako, ‎2012).

 

As emoções, um capítulo separado?

O lugar das emoções foi outro tópico que esteve em nossa reflexão, no qual não tínhamos necessariamente diferenças de opinião, mas reconhecemos que é ainda uma pergunta que temos:eu fiquei me perguntando muito depois na aula é do limite mesmo, do limite que é quando a gente coloca as nossas emoções e as nossas coisas no texto(M.M., 2020: 3).

O que é então “distância” em perspectivas críticas? O que é “distância crítica” nas epistemologias do Sul? Como essa distância é narrada no processo investigativo? Como se dá conta de esta ética e politicamente (...)? Em algumas das experiências das pessoas que compõem o coletivo, essas questões estão permanentemente no processo de formação e também reconhecemos que desde perspectivas críticas falam também dessa “distância”.

 

De quem são as palavras? Autoria, co-autoria e não autoria

Uma última grande questão que emergiu como problematização em nosso processo de reflexão, foi o papel da autoria e onde situar teoricamente este processo metodológico e epistemológico realizado: “será que somos capazes de abandonar o método científico imposto e começar a usar outros conceitos?” (B.L., 2020: 3).

O próprio termo colaborativo, usado sobejamente dentro da nova linguagem neoliberal do empreendedorismo, que busca reconhecer as/os trabalhadoras/es como colaboradoras/es (embora muitas não usufruam dos lucros destas empresas) pode também ser problematizado porque não está ilibado de problemas. A dimensão participativa que uma colaboração subentende, não é necessariamente horizontal. Quanto ao termo "não extrativista" ele em si não dá conta de toda a crítica. O extrativismo não é necessariamente predatório. O extrativismo que as comunidades indígenas, por exemplo, fazem da terra, das plantas não é o mesmo que uma multinacional da madeira faz da mesma floresta.

Diante dos limites, conjunções ou divisões que podem ou não existir na classificação de metodologias pós-abissais, colaborativas ou não-extrativistas, não houve consenso, é um aspecto que deixamos em aberto: existem diferenças entre essas metodologias ou quando se fala em metodologias pós-abissais, são todas incluídas: colaborativa, participativa, não extrativista? Se houver diferenças, quais seriam elas? Ao separar as metodologias abissal e pós-abissal, estamos falando de algumas que são “melhores” do que de outras? Quais são as lutas urgentes da academia em termos de metodologias colaborativas? Quais seriam as condições para quebrar as barreiras das epistemologias do Norte?

Em relação ao tema das autorias, nossas reflexões giraram em torno de duas questões. A primeira delas foi pensar na propriedade da palavra falada, do que é nomeado, quem é o dono das palavras? Entendendo que, muitos daquelas que usamos e recriamos hoje têm historicidade, talvez já tenham sido “apalavradas” por outras pessoas, enunciados em outros tempos e contextos, então, como objetos em museus, as palavras perdem seu poder e significado quando sujeitas a definições em glossários ou dicionários? A palavra perde seu poder quando definida? ou verbalizada? Quem tem o direito de sua autoria?

nós apagamos os verdadeiros autores. É por isso que eu acho interessante esta questão da não autoria. Porque há termos que já se perdeu o seu autor. Porque estamos neste mundo há séculos e há termos que já foram utilizados. (C.A., 2020: 3)

Finalmente, um dos aspectos que mais nos questionou quando pensamos na possibilidade de nos situarmos a partir de metodologias não-extrativistas no âmbito do processo de doutorado é a questão da autoria e coautorias na pesquisa. Diante da impossibilidade de uma coautoria nos processos investigativos, como pode ser construída uma metodologia não-extrativista, se é o pesquisador que, em seu exercício interpretativo, constrói o texto narrativo e nomeia o que é produzido como seu? É por esse motivo que esta aposta solidária, de coautoria, tornou-se, como mencionamos no início deste apartado, em uma posição e opção ética, para convidar à abertura de caminhos.

 

Memórias

Refletir sobre a nossa aprendizagem é também refletir sobre o que nos trouxe até aqui e as pessoas que constroem essa constelação de sabedoria que nos permite ocupar este espaço. Para este apartado procuramos refletir e recuperar nossas memórias: pessoas, geografias, textos, encontros com colegas e professoras/es que tornaram nossa experiência de aprendizado significativa, dando conta de tensões, problematizações e transformações da mesma. Com isso, buscamos entender como nossas motivações e caminhos individuais foram desaguando em espaços comuns e criando algumas trajetórias coletivas.

De acordo com os tempos das memórias, este apartado está dividido em duas subseções que refletem os dois encontros: ‘como chegamos até aqui’ e ‘o agora’. Buscamos trabalhar as memórias trazidas nos encontros a partir de algumas palavras que surgiram neles, que chamaremos de “palavras pedras”, pois acreditamos que “las palabras producen sentido, crean realidad y, a veces, funcionan como potentes mecanismos de subjetivación” (Larrosa, 2003: 165).

 

Cómo llegamos aquí - Palabras piedras

Camino(s)

La primera palabra que surgió en nuestros encuentros o procesos de memoria es “camino”. Partiendo de la canción “A estrada” de Anaquim (2016), siendo la vida un camino abierto, “una calle, una carretera, una trocha, un sendero” (H.C, 2020: 4), que se traza andando, no siempre es fácil saber desde donde comenzar a narrar y recordar el cómo llegamos aquí y ahora. Se para algumas o caminho até o doutoramento se inicia há vários anos, para outras é um caminho que tem apenas poucos anos ou até poucos meses. A noção de tempo e de maturação do processo reflexivo da nossa experiência, e que nos traz aqui difería bastante entre nós. A veces los caminos se escogen y aclaran en nuestros primeros momentos de vida, a partir de gustos, quereres e intuiciones.

 

Encuentros

En los caminos que recorrimos y narramos honramos los encuentros, estas personas, las pregunta que nos posibilitaron estar aquí (A.M, 2020: 4), reflexionamos acerca de, cómo la posibilidad de emprender un doctorado no es un proceso que surge en lo individual, sino que se apoya en una densa malla de relaciones y encuentros significativos, como fue expresado por una de nuestras compañeras:

foi no meio deste caminho [da maestria] que tive o presente encantado de ser coorientada pelo professor Kabengele Munanga, antropólogo e profesor congolês, especialista em antropologia da população afro-brasileira, que me apresentou os estudos descoloniais e mudou desde então a minha trajetória de investigação e as lentes pelas quais eu enxergava a mim e ao mundo. Kabengele é um ancião e eu tenho muita gratidão por ter cruzado o caminho dele. Ele mora em Cachoeira. Morávamos relativamente perto. Às vezes eu ia caminhar e ele estava caminhando também e eu ia caminhando atrás dele, pensando: MEU DEUS, estou caminhando junto com KABENGELE MUNANGA! (B.J., 2020: 4)

 

Búsquedas

As memórias anteriores ao doutoramento refletiram muito dos processos pessoais de buscas: buscas de como estar no mundo, como trabalhar com nele, buscas profissionais e também espirituais:

eu senti que o doutorado para mim ele foi uma convergência de dois caminhos muito diferentes que ficaram muitos soltos na minha vida por muito tempo. Um caminho mais profissional, [...] e a espiritualidade. [...] Não sei as razões do porque eu estou aqui, exatamente, acho que ter integrado a Umbanda na minha pesquisa fez um pouco mais de sentido, sabe? (M.M., 2020: 4).

Grande parte das vezes essas buscas constantes foram motivadas por sentimientos de inconformidade con las realidades, por cuestionar y cuestionarse críticamente y constantemente, intelectualmente, pero también corporalmente:

siempre la gente me decía, ¿y estás pensando hacer de pronto un doctorado? Y no, por ahora no, de pronto más adelante. Y era siempre más adelante. Simplemente porque sentía que lo que yo podía aprender en ese momento y que necesitaba aprender en ese momento no estaba en la academia, por más que trabajaba en una universidad que, pues digamos que no era una universidad hegemónica, para nada. Y eso significó también ponerme en juego, cada rato, no estar nunca segura de mi lugar, mucha incomodidad todo el tiempo. Por ser yo blanca, por ser yo privilegiada, por ser yo, en fin, una serie de cosas, por ser yo mujer en ciertos contextos, al principio por no tener hijos, por tener hijos, siempre por todo. Siempre había algún momento de nunca encajar al 100%, pero tampoco me molestaba el no encajar. (H.C., 2020: 4)

Esa inconformidad, sentida por ejemplo en contextos educativos, como es “o nível de desconexão com a realidade” de algunos programas universitarios, o en lo laboral, impulsaron los cambios y alimentaron miradas críticas:

la experiencia de ser profesora de esa cohorte de la maestría que me confrontó con el tener que estudiar la propuesta de epistemologías del sur, si quería enseñar lo que sentía que hacía falta, pues había que estudiar [...] después que hice la especialización en epistemologías del sur diseñé un curso corto para pensar la salud pública desde allí. (A.M., 2020: 4)

 

Luchas y esperanzas

Muchos de los encuentros y motivaciones que han ido orientado nuestros caminos se dan en diversas luchas sociales, luchas que se realizan en diferentes geografías del mundo, en diferentes temas, niveles y dimensiones, pero son acomunadas por ser anticolonialistas, anticapitalistas, anti-heteropatriarcais y feministas: “eu era a brigona da sala, simplesmente por acreditar em um sistema de saúde não possível, mas como deve ser, e por isso na verdade que eu estudo, somente por isso, não é por mim” (C.K., 2020: 4).

 

Violencias y dolores

En ocasiones, esas luchas fueron interrumpidas por violencias, por huir de esas violencias, y necesitaron encontrar otros espacios desde dónde emprenderse, siendo la universidad y especialmente el doctorado una posibilidad “siempre le decía a la gente, yo voy a volver así sea haciendo un doctorado porque pues sí, voy a hacer eso. Entonces, para mí, empezar en Coimbra fue como volver, volver al Chocó” (H.C., 2020: 4).

Outra sensação de violência partilhada por nós foi a vivida nos processos acadêmicos e profissionais, nos momentos de escrita de trabalhos de conclusão de curso de graduação e mestrado, os sentimentos de solidão e medo que nos rodeiam:

o ano em que eu estava em tese de mestrado. Nessa altura eu estava num lugar muito feio, muito estranho, esquisito, em que não acreditava naquilo que estava a fazer, porque que é que o estava a fazer. […] ninguém acreditava ou sequer entendia o porquê ter escolhido aquele tema. […] Enfim, em 2016 eu estava mesmo muito mal e não acreditava em mim ou na academia (B.L., 2020: 4).

Partilhamos também formas de dores e violências impostas pelo capitalismo, colonialismo e heteropatriarcado, que marcaram e marcam nossas histórias de vida e de lutas. Como nos alerta Munanga (2007), as diferenças biológicas fenotípicas, como a cor da pele e os traços faciais, na sociedade estruturada por hierarquias raciais, se tornam fatores de dominação e exclusão, geradores de desigualdades e violências, que têm nas instituições educacionais e nas barreiras para o acesso à educação um extenso terreno da exclusão:

quando entrei na universidade fui da primeira turma de cotistas[4] do curso de história. E, assim, eu até hoje carrego muitas sequelas dessa entrada, porque era o momento que havia uma discussão na universidade de que estudantes cotistas iam diminuir a qualidade da universidade; que a gente não tinha competência para estar naquele espaço; que a gente não sabia. Então, eu entrei na universidade com todos esses estigmas de “não saber”. E até o quarto semestre (isso faz muito parte também da dificuldade que eu tenho em falar no ambiente acadêmico de sala de aula até hoje) ... até o quarto semestre eu estava na universidade e eu só lia e ouvia os professores falarem. Eu era extremamente silenciosa. Eu absolvi a concepção bancária de educação que Paulo Freire teorizou. Achava que era um recipiente vazio e eu estava naquele espaço para adquirir conhecimento válido...O processo de chegada ao Programa Pós-Colonialismos e Cidadania Global do Centro de Ciências Sociais da Universidade de Coimbra foi um processo muito difícil. A travessia transatlântica para o eu-mulher-negra, com poucos recursos financeiros, por alguns momentos exigiu tanto esforço, doeu, cansou a ponto de parecer estar sendo feita à nado. Mas, os ventos das encantarias sopravam ao meu favor. Cheguei e estou (B.J., 2020: 4).

A partir dessas dores, dessa inconformidade e também das diferenças das nossas experiências, também pudemos compartilhar sonhos e utopías que temos para construção de um projeto emancipador.

 

El ahora – Palabras piedras

Encuentros y despedidas - abrazos y cuerpos

Cuando recordamos la experiencia del primer año en el programa doctoral, lo primero en aparecer fueron os encontros, afetos e emoções no nosso processo de aprendizagem, “Acho que lembrei-me muito mais também das pessoas do que propriamente acontecimentos concretos” (B.L., 2020: 5).

Cada uma tem a memória de quais foram os primeiros vínculos criados no doutoramento, assim que chegaram para esta nova fase em Coimbra. Estos primeros encuentros lograron quebrar expectativas iniciales, quebrar ideas individualistas, cambiando miradas y infundiendo esperanza en algunas:

él me hizo creer ʽsí, tu puedesʼ, aquí todos tenemos nuestros: ʽtampoco sabemosʼ. En medio de todas las dudas, el grupo me enseñó eso en el primer encuentro. Y claro de allí el hecho de que yo solo iba a clase, de una forma muy individual, yo creo que eso desde el segundo día se cayó totalmente. Y me doy cuenta de cuanto ha sido importante ese proceso. (H.C., 2020: 5)

Alguns, relatam que algumas dessas conexões foram estabelecidas antes mesmo do encontro presencial “as pessoas que comecei a falar sem nunca as ter visto e depois quando de repente as encontrei parece que foi tipo... que tínhamos visto ontem num bar ou numa casa, qualquer coisa assim, e nos reencontramos” (C.A., 2020: 5). “Parecia que eu estava abraçando um velho amigo que reencontrava”. (B.J., 2020: 5)

Outras foram através dos encontros presenciais, do contato despertaram os vínculos:

no segundo dia fomos à FEUC todos, e havia um lanche e eu fui, sempre cheia de medo, e na fila para o café e há alguém que vem falar comigo […] e ele diz-me “ah tu és do pós-col”, eu disse que sim e ele disse “então anda cá que estão aqui os outros”. Eu fui atrás dele e ele tocou no ombro de uma pessoa e essa pessoa era a […]. Foi a primeira pessoa que eu conheci assim mais diretamente e eu acho que nunca me vou esquecer daqueles olhos azuis enormes a olhar para mim e a dizer “Olá!”. Depois logo apareceu o […] […]. Depois cá fora estávamos já a despedir-nos e a […]disse “eu sei que tu não és brasileira mas eu vou te dar um abraço”. E, também fez parte deste ano para mim, aprender a deixar-me abraçar. Mesmo por “estranhos”, que isso também faz parte e não faz mal deixar as pessoas [se aproximarem]. Aprender a dança da […], porque ela abraça as pessoas do outro lado - que é para tocar com o coração. (B.L., 2020: 5)

Outras conexões foram feitas através de um processo de construção ao longo do doutoramento, que demandou tempo, paciência e conhecimento sobre as histórias e motivações de cada um e cada uma. Mas não foram só de encontros e vínculos formados que esse processo se constituiu. Foram muito presentes também os sentimentos de solidão, medo, as rupturas e também despedidas.

 

¿Dónde está el grupo? Decepciones y esperanzas

A partir dos nossos encontros, já podíamos nos considerar un grupo? Habíamos tejido algunas relaciones interpersonales, que poco a poco fueron delineando una red, algunos momentos fueron clave para ello y fueron recordados con cariño. Apesar das alegrias vividas, dos encontros compartilhados, muitas vezes essa turma também foi motivo de decepções, y surgió la pregunta: ¿somos un grupo? ¿dónde está el grupo? ¿hay solidaridad?

“Una gran decepción, de yo imaginarlos a ustedes trabajando, haciendo cosas juntos, yendo a esos eventos, y cuando iba a los eventos no había nunca nadie tampoco del grupo [...] La otra decepción fue que de tantas propuestas que surgieron en el grupo, las desperdiciamos todas [...]” (H.C., 2020: 5).

Reconocemos que la construcción de grupo necesita de tiempo y paciencia, y entendemos que aún estamos en ese proceso:

o que eu queria partilhar era sobre o fato, mais uma vez, de as construções demandarem paciência, tempo... O fato de estarmos compartilhando o mesmo espaço no doutoramento, não necessariamente nos liga em automático... paciência e construção... Eu quero falar também sobre todo cuidado que recebi desde que cheguei, do compartilhar para lidar com o frio, com as burocracias do SEF.[5] A visita que recebi quando estive doente. As escutas. Ser levada para ver o mar... Todas as ajudas que recebi da [...] com as referências. Todo o companheirismo e construção de amor com […]. (B. J., 2020: 5)

Deste modo, entendemos que a construção deste trabalho foi possível por todas as vivências aqui relatadas, todos os encontros e desencontros, os medos e cuidados no caminho, foi essa história que nos trouxe até aqui.

 

Des-centrar(nos): Miedos, retos e interpelaciones

Enfrentar uma nova fase em nossas vidas é sempre um desafio e o processo de doutoramento para muitas de nós implicou em uma grande mudança, seja física, emocional, espiritual. Encarar o doutoramento para muitas de nós implicou em estar fora da zona de conforto: “se a minha mudança para vir para cá vem com a decisão de uma vida académica [a ser per(seguida)] ela também vem com uma decisão de ter outros ritmos [de ter tempo]... Essas decisões implicam [mudanças e] uma precariedade” (W.P. L., 2020: 4).

Para outras foi um eterno deslocar-se, por haber decidido no cambiar su lugar de residencia: “creo que uno de los primeros recuerdos, yo sentada eternamente en un tren, horas sentada en un tren, en un avión, en un aeropuerto, porque eso era mi experiencia cada dos semanas[...]ʽ¿cómo carajo voy a hacer eso todo el año?ʼ ”. (H.C., 2020: 5)

Foi também sobre mudanças de vida para um país diferente, sin una red de apoyo y siendo atravesadas por múltiples estigmas o categorizações, sobre os desafios de ser imigrante e buscar esperança nas pequenas coisas:

eu cheguei aqui e foi muito difícil, minha primeira semana foi horrível. Eu compartilhei com você a foto a postagem que eu fiz, das flores. A semana foi horrível. Quando eu liguei para o senhorio, para alugar o meu apartamento, a primeira coisa que ele falou para mim foi “brasileira?”, tirando várias outras coisas assim que aconteceram.  Na primeira semana eu não estava bem e eu via sempre essas mesmas florzinhas no chão, tirei a foto e achei que era um sinal do universo, de que as coisas vão certo. Era uma esperança, não era o que eu estava sentindo no momento mas era uma esperança. (M.M., 2020: 4)

Para outras isso se somou ainda a dificuldade da comunicação em outro país: “no entendía nada de portugués, porque por más que hubiera hecho un cursito, no entendía nada y tenía mucho miedo de salir de esa casa, pensaba, Yo voy a salir y ¿qué voy hacer? Entonces estaba en pánico” (A.M., 2020: 5).

E mesmo para aqueles que não precisaram fazer um deslocamento físico, porque no tuvieron necesidad de migrar, escolher o doutoramento de Pós-Colonialismos também foi um des-centrar estando em seu próprio país:

na semana de acolhimento, eu estava cheia de medo. Tinha muito, muito medo. Tinha medo porque já estava no CES há algum […] sabia que havia poucos portugueses e sabia que isso me punha num lugar à parte do resto das pessoas. E tinha muito medo de...não me sentir acolhida. É muito engraçado a [...] dizer que na primeira semana tentava fugir das pessoas e afastava-se, porque eu fiz o mesmo. Não porque não entendesse, mas porque tinha medo. (B.L., 2020: 5)

Este des-centramiento, mismo estando en su contexto, atravesó también situaciones aparentemente cotidianas, ya que los encuentros nos llevaron a mirar lo de siempre “a partir do olhar dos outros [...] Também trouxe esta foto do Outono, que para mim é normal, mas foi na vossa visão que voltei a ver, que voltei a ver Coimbra de outra forma” (B.L., 2020: 5).

A lo largo de nuestros recorridos, los des-centramientos fueron varios, y en diferentes niveles, lo que el grupo retoma significativamente a la hora de hacer un balance del año en aulas y del encuentro con las profesoras y los profesores. Estos des-centramientos significaron múltiples interpelaciones que nos ayudaron a: fortalecer nuestros temas de investigación, a plantearnos la importancia de continuar con una mirada crítica de la realidad preguntándonos siempre sobre nuestros lugares y la importancia de conocer otras luchas.

Para algunas, el ahora ha significado la posibilidad de encuentros con otras luchas en las cuáles no habíamos participado antes, que no veíamos, permitiéndonos ampliar la mirada:

En uno de los momentos que yo estaba en Coimbra más tiempo y con algunas personas fuimos a ver un documental,[6] unas imágenes audiovisuales de Amilcar Cabral y había esa música, y esa música siempre me andaba allí rondando en la cabeza [canción Amilcar Cabral (Bu Morri Cedo) de Lima (1974)]. Y la asocio mucho también a ese tema del descentramiento, como de mirar hacia otros lugares que no conozco, porque tampoco entiendo completamente la letra, pero la entiendo de pronto desde otros sentires. (H.C., 2020: 5)

Esto nos cuenta, finalmente, de cómo los aprendizajes más recordados por nosotras se hicieron a través de experiencias que pasaron por emociones, por el cuerpo, por el “aprender a deixar-me abraçar” (B.L., 2020: 5), de forma colectiva incluso, y no únicamente en las aulas universitarias:

temos muita resistência em mostrar os afetos. Porque se calhar é a parte que nós consideramos como fraqueza. E acho que estamos neste espaço para destruir um bocadinho disso. [...] É um espaço que vai além de uma simples construção de conhecimento né? porque há muita intimidade e muito afeto [...]temos que trazer outras narrativas sobre a potencialidade do espaço como um dos caminhos que vamos construindo. Gosto desta questão do sentido das aprendizagens, o sentido das aulas, essa questão sobre o que nos fica na memória, das aulas, que não são os grandes textos, autores mas sim um conjunto de conversas, de falas de pessoas muito específicas e de compartilhamentos. (C.A., 2020: 5)

 

Academia

Entendemos que o espaço da academia que estamos atualmente ocupando, deve ser mais do que um espaço de acúmulo de informação, que nos capacitará para emitirmos opiniões, tudo isso numa velocidade intensa e excesso de trabalho. Como diz Larrosa: “la experiencia, la posibilidad de que algo nos pase, o nos acontezca, o nos llegue, requiere un gesto de interrupción, un gesto que es casi imposible en los tiempos que corren” (Larrosa, 2003: 169).

A primera lectura, lo que nos une es el haber escogido el mismo programa doctoral, lo que fue motivado por varias de nosotras por unas expectativas hacia el CES como otro tipo de academia, sobre las profesoras y los profesores que allí íbamos a encontrar. Una referencia clave para escoger el programa del CES fue la de Boaventura de Sousa Santos, otras serían las posibilidades que este espacio distinto podría ofrecer: “CES como mesmo espaço académico com potencialidades para construir outros saberes e criar determinadas redes” (W.P.L., 2020: 4).

Algunas de las compañeras manifestaron la necesidad de expresar un sentimiento de gratitud con el CES, con el doctorado y con las y los profesores reconociéndolos como espacios académicos distintos no obstante, esto no implica que estos estén libres de contradicciones internas, contradicciones que, para algunas de nosotras, se expresan también en quienes optamos por estudiar este doctorado.

Es así como emergió la necesidad de entender la crítica como gratitud con estos espacios, con las y los profesores y con nosotras mismas como estudiantes, por que creemos en esta como potencia para la transformación:

eu acho que estando nesse espaço de pós-colonialismos temos uma certa responsabilidade e sem ser muito… como dizer?  Eu acho importante cultivarmos aquilo que é o agradecimento e a gratidão não no sentido servil do termo, mas no sentido de que apesar dos pesares há um espaço de troca e há solidariedades. É porque de facto somos muito gratos com este espaço que é o CES, o pós colonialismos e essa pessoa que é o Boaventura, que é uma pessoa diferente dentro daquilo que é a academia portuguesa, que nós temos que critica-lo, criticar este espaço muito mais do que outros, porque queremos dar continuidade ao processo de melhoramento este espacio... (C.A., 2020: 4)

Como experiencia significativa en el ahora, fue expresada la  gratitud por la posibilidad del encuentro con el profesor Boaventura de Sousa Santos que, aunque virtual, fue sentido como potencia el poder compartir de manera cercana con él, distinto a que hubiese sido en un auditorio.

Además de las expectativas con la academia, evidenciamos múltiples barreras que influenciaron nuestro acceso y nuestro estar en este espacio. En primer lugar, las dificultades en la comunicación en la lengua portuguesa europea “porque por incrível que pareça eu estava entendendo melhor o espanhol do que o português” (C.K., 2020: 5). Contudo, o retorno a língua portuguesa, também foi uma das razões para una de las compañeras escogiera el  CES como lugar de formación: “é Portugal por causa do português: pensar e escrever na minha língua materna [nessa língua colonial, na qual tenho infância][7] e era importante poder refletir e criar em português. Entendo o CES como lugar de retorno” (W.P.L., 2020: 4).

A parte de las burocracias ligadas a la migración, otra barrera muy sentida en el ahora ha sido no tener el sustento económico asegurado, el no tener beca de estudio. Algunas de nosotras narramos como el ahora ha estado atravesado por dificultades financieras y precariedad económica.

En la reflexión y conversación del ahora aparece el aula como espacio fundamental para los procesos de aprendizaje académicos, entendemos que el aula no es simplemente una tela de fondo, sino un espacio con el que nos relacionamos y construimos de manera conjunta, transformándola en un espacio nuestro, en una zona de conforto, donde la risa y los cuerpos alegran muchos momentos. A partir de marzo del 2020, debido a la pandemia de Covid-19, la rutina de las aulas presenciales sufre un cambio radical, para algunas una ruptura con el proceso de aprendizaje. Los espacios de aula construidos a lo largo del primer semestre quedan suspensos a tiempo indefinido y enfrentamos el reto de las aulas virtuales. Si para algunas la virtualidad significó una pérdida casi total de espacios y de posibilidades, para otras personas representó una ventaja:

eu na verdade vejo vantagem nessa questão da distância e de ter aulas por zoom. [...] E como estavas a dizer […] não é por acaso que não foi quando estávamos juntos que esse projeto nasceu. Mesmo para disciplinas como a da Maria Paula que tem essa forma muito próxima a nossa de pensar. Mas que tenha sido agora a partir deste espaço virtual que estamos todas a criticar que esse projeto nasceu. Acho que isso é muito informativo e dá muita coisa a pensar. O porquê de ter nascido virtualmente, o porque dessas emoções que todas estamos a sentir nos outros porque a fala das outras parece que nos invade de uma forma muito agradável e isso acontece virtualmente. E acho que isso mostra uma outra forma de encararmos este espaço virtual que tem gerado tantos problemas. Se calhar ele não é o mal em si mas aquilo que nós fazemos dele. (C.A., 2020: 5)

De esta manera, sobre todo a través de nuestros encuentros de reflexión colectiva, re-significamos la virtualidad, la transformamos en un espacio de vida compartida, en ventanas de convivencia. Ao longo deste ano na academia, mas também vislumbramos como lentamente construímos nossa experiência de aprendizagem:

às vezes a gente tem a ideia de que ʽnão, não aprendi nadaʼ. ʽTeveʼ um dia que falei com um amigo meu, ele estava perguntando coisas sobre o doutorado e quando eu vi eu realmente sabia muitas coisas, coisas para indicar para ele, os textos que me marcaram e sabia até explicar um pouco sobre eles [risos]. E eu até fiquei impressionada, porque não são coisas estanques, são coisas que lentamente vão tomando a gente, inclusive conhecimento. (M.M., 2020: 5)

El camino juntas, los retos, los cuestionamientos y descentramientos, los aprendizajes y alegrías compartidas nos fortalecieron recíprocamente, llenándonos de esperanza hacia posibles transformaciones en la academia.

 

Utopía como vínculo - lo que nos une

Nuestros caminos al final de los encuentros de reflexión colectiva ya no son tan aislados, tan divergentes (Bispo, 2015: 91), sino que con sus diversidades empezaron a acercarse. Esto se dio gracias a la creación de un espacio de vida, de convivencia, “não quero usar o termo família porque isso é muito forte, mas é um espaço que vai além de uma simples construção de conhecimento né? Porque há muita intimidade e muito afeto” (C.A., 2020: 5).

Entre las líneas, en los entredichos, en las interpretaciones de nuestras memorias y narrativas, entendimos que lo que nos acomuna son nuestras luchas por un mundo justo, y no apenas por un mundo posible. Nos une creer en la utopía.

 

Tecituras

Nesta seção, iniciando uma jornada-Sankofa, fazemos uma retrospectiva crítica dos nossos encontros desde o início da nossa caminhada. A partir dos nossos lugares, contextos e especificidades tentamos perceber o que nos une e fortalece e o que nos distancia e causa desconforto enquanto coletivo. Interrogamo-nos sobre como fazer a alquimia das diferenças e do comum, transformando-a num potencial de fortalecimento. Propomos, assim, discutir as possibilidades várias que o dissenso, tal como consenso, geram. Num processo próprio de costura e tessitura, desfazemos os nós para melhor entrelaçar e reforçar os pontos de encontro entre nós.

 

Um leve voo Sankofa

Entre os Akan do Gana e da Côte d’Ivoire, os tempos passado, presente e futuro são concebidos em termos de uma circularidade aberta, representados pelo Adinkra[8] Sankofa, palavra que na língua Twi significa: retorna, olha, pega. A imagem dá corpo ao provérbio Akan se wo were fi na wosan kofa a yenki.[9] A Sankofa, como conceito, evoca sabedorias, ancestralidades, memórias, fortalecimento, pertencimento e futuridade. O gesto, sugerido tanto pelo provérbio como pela imagem, é de recusa de toda a linearidade. Os Adinkras podem ser reproduzidos em vários outros padrões e permitem a ressignificação dos símbolos de acordo com os contextos, esses símbolos têm sido verdadeiros códigos de linguagem para os movimentos artísticos e políticos entre as Áfricas e as suas Diásporas. A Sankofa é um símbolo que representa todo o vasto pensamento panafricano. Os Adinkras lembram-nos que pequenos conceitos e curtos provérbios podem conter ensinamentos infinitos e extremamente complexos. Os Adinkras, além de códigos de linguagem, são receptáculos e guardiões de memórias coletivas. Neste nosso trabalho coletivo, a Sankofa foi um elemento presente que estruturou toda uma dinâmica mística e as reflexões sobre memórias e aprendizagens diversas que compartilhamos.

 

Existências plurais: redes visíveis e invisíveis

Cogito, ergo sum. Quem afirma é Renée Descartes no seu Discurso sobre o Método (1996[1637]). Descartes que inaugura o pensamento cartesiano, em que o dualismo entre corpo e mente faz escola e a primazia da razão como soberana se torna presente. “L’émotion est nègre, comme la raison est hellène”.[10] Quem afirma é Leopold Sedar Senghor em Ce que l’homme noir apporte (1939: 295).

O ‘eu’ racional de Descartes, que existe sozinho porque tem o poder de pensar e a partir daí de afirmar a sua existência, é um ‘eu’ que grita ao mundo um universalismo monolítico a partir de si. A emoção negra que Senghor compara à autoproclamada razão helénica, nega e desmonta esse universalismo monolítico, afirmando que a emoção é também ela racionalidade, que as duas são parte de uma e que uma é tão válida quanto a outra.

Em uma de nossas conversas, uma compañera expressou: “Eu sou várias” ( B. J, 2020: 6) Dizer-se várias, é por um lado, recusar este eu cartesiano que existe per si e por si, e afirmar as existências múltiplas que compõem a nossa pessoidade. Por outro lado, é testemunhar a própria dialética entre a razão e a emoção, entre essas várias. Trata-se de um pensamento profundamente ancorado dentro de uma cosmovisão mais ampla, que concebe a existência como coletiva e a própria pessoidade como receptáculo de múltiplas existências materiais e imateriais, orgânicas e inorgânicas.

 

Sussurros: o chamamento como tributo às/aos ancestrais

Procuramos por trilhos do sensível e refúgios sencientes que, quais portais de uma “quarta dimensão” (Soyinka, 1973) - este abismo anulador e transformador que é o caminho de travessia entre mundos nos possibilitasse uma transição fluida entre: o universo, a pessoa, o divino e o cosmos. Este momento foi buscado graças às místicas iniciais. Desta forma, o ritual das místicas permitiram tanto o contacto como a porosidade. Abrir os poros permite receber e canalizar o sentir, assim como entrar em contacto com formas não materiais de existência, nomeadamente, as/os nossas/os ancestrais. Estas místicas formaram momentos de potência nos nossos encontros porque através delas confirmamos a nossa pertença ao coletivo e reforçamos as linhas que nos ligam.

No sexto e sétimo encontros a mística marcou a cadência em dois momentos, onde a ancestralidade foi trazida, enfatizando assim essa ideia de continuidade, circularidade e fluidez desta jornada-Sakofa. Se, num primeiro momento, o ritual místico convidou-nos a evocar às/os nossas/os ancestrais; num segundo, o convite foi de pensar a possibilidade de partilhar essas/es ancestrais. O desafio lançado consistiu em considerar uma ancestralidade partilhada, de forma a melhor vislumbrar um horizonte comum. Pensar a questão de uma ancestralidade partilhada ajuda-nos a olhar de uma forma outra as grandes divergências filosóficas que circulam em torno das três grandes perguntas existenciais  quem somos?, de onde viemos? e para onde vamos?

 

As funções da ancestralidade, entre a ancestralidade e a materialidade

Dizer-se várias, por outro lado, é permitir a construção de algo em comum, mesmo face às diferenças várias que nos atravessam: origens, subjetividades, interesses, sentimentos, desejos e lutas. É também problematizar as ausências, o que não aparece, o que não suscita interesse nem curiosidade, o que desconhecemos, o que não sentimos e que, precisamente por isso, causa violência na nossa memória comum: “yo les preguntaría, por ejemplo, qué sabemos de los líderes y lideresas colombianos que también han muerto, y cuántas veces quisimos hablar de ello”. (A.M., 2020: 7)

O aspecto genealógico torna-se demasiado restrito e quiçá irrelevante para a ancestralidade no sentido amplo. Os contatos e os vínculos que se vão criando redefinem a própria noção de família e de pertencimento, aumentando a elasticidade do conceito, considerando as coisas da natureza como elementos também ancestrais e portadores de informação e saberes, como as pedras, as quais são reconhecidas como ancestrais nos rituais de Temazcal, a ancestralidade como uma “uma rede com vários elementos” (M.M., 2020: 7) formada por várias outras existências que de facto compartilhamos. Agir neste mundo incita-nos não só a multiplicar alternativas emancipatórias para o futuro, mas implica também assumir responsabilidades com o que nos rodeia. De facto, percebemos que existem resistentes redes de apoio que nos entrelaçam, que nos envolvem e que nos projetaram para este doutoramento, o próprio espaço de doutoramento integra essa rede.

 

Linhas que se emaranham para formar a coletividade

Nosso processo de tecitura, permitiu-nos reconhecer que somos aprendizes de muitas maestrinas e maestros, aprendemos a agradecer em línguas não nossas. Para nós, a gratidão tornou-se uma política do amor revolucionário, para dizê-lo com Houria Bouteldja (2016). Na verdade, a ideia das redes levam-nos a pensar a gratidão, também como proposta de justiça cognitiva, porquanto assiste-nos, uma responsabilidade, um compomisso comum, de reconhecer todas as pessoas que nos têm permitido chegar aqui:

...seria importante pensar, e aí pensamos no poema que a professora Maria Paula Meneses nos dedicou e a […] nos compartilhou: Os pés da mesa (Mutimati, 2008) , a ideia de que os ancestrais também são parte dessa nossa mesa que nos sustenta. [Que eles são] uma das nossas redes de apoio. Que estamos aqui no doutorado, estamos problematizando isso, também por várias redes de apoio que nos possibilitam isso. Sejam nossos familiares, amizades, aqueles seres que talvez já não estejam presentes no mundo material, mas que também são inspiração, ideias e exemplos que temos. (W.P.L., 2020: 7)

 

Conversas no silêncio e o silêncio como conversa

En su Conversación Infinita Maurice Blanchot preguntaba: “en qué momento y cuántas veces, cuando ocho personas están sentadas en el horizonte de una conversación, conviene tomar la palabra si no se quiere pasar por silencioso (Blanchot, 2008: 94). Estabelecer a relação entre nós implicou também reconhecer que existem canais de comunicação outras, formas de dizer outras, línguas outras e que era mister incluir e ativar todas as possibilidades de expressão “É exatamente por transitarmos por diferentes espaços, com distintas línguas, temos distintas bagagens. Cada um de nós tem diferentes bagagens que nos permitem ver o mundo com diferentes lentes” (W.P.L., 2020: 7)

Isso levou-nos sobretudo a considerar e a respeitar formas não-verbais de linguagem e a entender o próprio silêncio como possibilidade de conversa. Percebemos que, para que o silêncio se torne de facto conversa, é preciso que a intimidade, a compreensão mútua, a sensibilidade de sentir a outra sejam maturadas, o que, mais do que mera vontade, demanda tempo, demanda aprendizagem a conversar. Perceber essa importância de tecer o próprio silêncio, levou-nos a aprofundar e a complexificar o nosso posicionamento sobre a questão dentro do espaço acadêmico, em que tanto a fala como a escrita são consideradas como as formas únicas de construção de aprendizagens e de difusão do saber: O silêncio pressupõe, geralmente, uma impossibilidade de falar e, logo, uma ausência de conhecimento e de possibilidade de aprendizagem como expone-nos Raquel Lima (2020).

Esta sobrevalorização da fala em detrimento do silêncio, implica desenvolver formas de silenciamento que impossibilita considerar as potências do silêncio dentro dos coletivos e das lutas várias. O silenciamento imposto pelo espaço acadêmico garante a performance perpétua da fala enquanto poder totalizante de um conhecimento vertical e doutrinal. Expressar-se pela fala ou pela escrita verbal - e de preferência nas línguas hegemônicas do norte global e de suas academias - é o mais sagrado dos dogmas desses templos do conhecimento que são as universidades ocidentalizadas.

 

Ao longo dos nosso encontros os silêncios estiveram sempre presentes e por diferentes motivos: tensão, cansaço, a própria virtualidade do encontro, hesitação, emoção ou simplesmente e por vezes, de facto enquanto conversa e cumplicidade.

De forma geral, a nossa posição face a esses silêncios foi mudando à medida que fomos aprendendo a respeitar os minutos longos e curtos de ausência desta fala não-verbalizada. Mesmo nos momentos de tensão gerados por algumas questões que provocaram desconforto, o silêncio pareceu fluir não como escape, mas como tentativa de conexão com o nosso âmago, essa nossa pessoidade plural, a fim de nos questionar e melhor nos conhecer. Evidentemente o espaço virtual carrega algo de performático na forma como nos colocamos - a frente dos nossos computadores -, em que o silêncio é encenado pelo próprio microfone quando se encontra desligado: “os silêncios virtuais são muito mais incômodos que os silêncios presenciais. Os silêncios presenciais são comportados por várias outras coisas que a gente aqui nao consegue. O silêncio traz todas as expressões corporais que a gente aqui não tem acesso, ou tem acesso muito restrito” (W.P.L., 2020: 7).

 

Conversas em roda, palavras andantes, zunidos no Zoom

Palabras andantes

Es habitual que a lo largo del tiempo las palabras pierdan alguna de sus partes. Algún prefijo o algún sufijo que deja de significar, o, mejor dicho, la palabra en sí ya significa sin necesidad de esa otra parte que antes la constituía. Alguna H, alguna R, alguna S, que desaparece y se olvida. Otras veces es toda la palabra la que deja de existir. Pero hay veces que sorprendentemente a una palabra se le coloca una singularidad. Nos del latín nosotras. Nós del portugués nosotras. Nous del francés nosotras. Noi del italiano nosotras. ¿Y por qué en español a esa raíz del nos se le incorpora el sufijo otras? ¿De dónde y de cuándo aparece la necesidad de nombrar a la otredad para entender la mismidad? Pero hay singularidades. Ese nos-Otras, incorpora ese otras para remarcar la noción del cum, de la relación. Una relación que no tiene por qué ser bidireccional. Una relación que puede consistir en el cortocircuito de la propia relación. Porque el nos se configuró a partir de la contraposición a esa otredad.

¿Cómo podemos contagiar la relación de tal forma que se confundan la unicidad del nos y la multiplicidad del otras? ¿Cómo confluir? ¿Cómo convenir? He aquí el cum del contacto, del contagio, del común, de ser las unas con las otras, sin necesidad de reforzar una identidad. Hacernos colectivo, hacernos comunidad. Ser-las-unas-con-las-otras, ahora sí, al nos-Otras. Es este el acontecimiento donde la unicidad se hace multiplicidad. Donde la singularidad se hace pluralidad. Donde el conloquium, donde la puesta en común, la juntanza, es lo que permite el guión que une el nos y el otras. Donde la comunicación es entre nos pero siempre presentes las otras. Porque lo común que pudiera aparecer en un trabajo colectivo sólo tiene sentido a partir de esa otredad que nos constituye, a partir de esa presencia invisible, de esa memoria compartida: porque la otra no dejó de ser “yo misma”. Por eso decimos nos-otras también cuando decimos nosotras, en Colombia o en Andalucía, en Cabo Verde o en Brasil, en Suiza o en Portugal. Porque solo en la otredad y a partir del cum la lengua compartida, se hace más presente todavía. Solo en la otredad el cum del contacto, del contagio, nos hace, nos acontece. Conspiramos. Conspiremos.

 

Conversas em roda e o que é o coletivo?

Numa carta a juventude escrita em 1985 Amadou Hamapté Bâ escrevia que:

o grande problema da vida é a compreensão mútua. É certo que, tratando-se de indivíduos, nações, raças ou culturas, somos todos diferentes uns dos outros; mas temos também todos algo semelhantes, e é isso que devemos procurar para podermos reconhecer-nos no outro e com ele podermos dialogar. Então, as nossas diferenças, em vez de separar-nos, tornar-se-ão complementaridades e fonte de enriquecimento mútuo. Assim como a beleza de um tapete se deve à variedade de suas cores, a diversidade de homens, culturas e civilizações fazem a beleza e a riqueza do mundo. (Bâ, 1985)

Quisemos compor este tapete, tecer esta colcha de retalhos, confluir as nossas experiências. Por isso conspiramos, respiramos juntas. Para nós o coletivo enquanto processo e caminho ainda em construção significou muitas coisas e implicou pensar o dissenso e consenso como partes desta confluência. Assim, as perguntas o que nos une?, o que é o coletivo? e o que nos incomoda? foram as grandes orientadoras das conversas nas quais nos encontramos. Respondemos na pluralidade uníssona da nossas vozes, verbo e silêncio:

 

O coletivo como...

Espaço de solidariedade: “o coletivo só se constrói a partir do momento em que a empatia se transforma em solidariedade […] não basta só ter a capacidade de reconhecer no outro os sentimentos e as sensações e as suas lutas, mas é realmente no ser solidário com essas lutas que se gera o coletivo” (B.L., 2020: 6).

Coletivo como prática de complexificação das nossas lutas: “o que nos une é a possibilidade de complexificação das nossas lutas e das nossas existências [...].. cada uma de nós estamos engajadas em lutas que se unificam no horizonte de um mundo mais justo” (B.J., 2020: 6).

O que nos une é compartilhar vulnerabilidades: “o que todas nós temos em comum é a vulnerabilidade e a dependência das outras” (W.P.L., 2020: 6).

A solidão como não lugar, o coletivo como acolhimento: “talvez simplesmente o que nos une é não querer ficar sozinhas [...] É não querer ser solitário e isso reverbera na vida acadêmica e em toda a vida. A necessidade de não estar vivo solitário” (C.K., 2020: 6).

As trincheiras, as frentes, a organização, a luta: “a luta é o que temos em comum, um comum que é cheio de complexidades. Podemos ter várias frentes de luta, mas a guerra é um só. Ela é contra o capitalismo, contra o colonialismo, contra o patriarcado. E o que não nos une, se calhar, são as várias formas de fazer essa luta” (C.A., 2020: 6).

Pensar em o que não nos une, reconhecer e, sobretudo, complexificar o comum implica uma reflexão profunda e crítica sobre o que hoje chamamos alianças. É certo que o nosso coletivo é constituído por pessoas diferentes em termos de trajetórias e objetivos, porém a distinção mais flagrante tem a ver com o gênero e a pertença racial. Por isso, questões como o patriarcado e o racismo nos tocam a todas como temáticas comuns e sensíveis. Contudo, não estamos nem viemos dos mesmos lugares, da mesma história. Não habitamos a mesma dor, não temos os mesmos traumas.[11] Como espectros escondidos no âmago de nós, os nossos traumas nos acompanham colocando-nos constantemente em alerta, em situações de desconfiança. Por outro lado, os traumas, as dores, podem também se geradoras de processos emancipatórias, de catarse coletiva quando quando são reconhecidos e quando se ativa a reparação. Sobre isto podemos aprender muito com as lutas negras e indígenas.

Falar dos traumas implica permitir-se uma certa vulnerabilidade, deixar-se olhar e assim expor os nossos espectros, perder controle sobre uma parte de si. Falar dos traumas implica este descentramento difícil que exige muito cuidado porque há essas questões profundas que exigem tempo e, sobretudo, muita confiança, genuidade e disposição para sermos confrontadas com as nossas incoerências, superficialidades e feiuras. Num espaço com várias mulheres brancas a questão da branquitude, da genuinidade, fez-se presente como assunto de tensão e auto questionamento? Os nossos encontros aconteceram em pleno contexto das mobilizações mundiais inéditas contra o racismo. Como confiar? Como criar possibilidades que dessem conta dessas dores, umas fenotípicas, outras vivenciadas?

tem sido, na verdade, muito difícil, mas extremamente difícil confiar, criar conexões e ver possibilidades. Não estou a falar de alianças porque eu sinceramente tenho muita reticência com palavra aliança... considero a aliança como aquilo que é possível e nós temos que ir além disso. Temos que criar comunidades e fraternidade. Temos que criar família mesmo, família humana e para além de humana. Por isso acho o termo aliança muito limitador.  E é por isso que tem sido muito difícil estar em muitos espaços, inclusive neste doutoramento, inclusive em relação a vocês, que são pessoas brancas, por mais que tenham um pensamento crítico, porque há um conjunto de coisas que vos antecederam e que também me antecederam e que nos… torna super difícil criar um espaço como este que estamos a tentar fazer, de genuinidade. (C.A., 2020: 4)

 

Zunidos no Zoom

Neste processo percebemos que os nossos encontros foram também espaços de descentramentos, nos quais reconhecimos como o gênero, raça, sexualidade, classe, lugares e contextos, subjetividade e coletividade, mais que temáticas, são várias pontas poderosas que apontam para assuntos difíceis, cuja abordagem, embora superficial devido ao curto espaço de tempo, mostrou que ainda que fosse “extremamente difícil confiar” podíamos conversar e compartilhar.

Os campus do saber universitário, com as suas salas de aula ora celas, ora refúgio, são lugares limitados e limitadores. Insuficientes e impróprios para trazer a tona, de forma implicada, questões políticas essenciais como a branquitude, a raça ou a sexualidade. Quiçá por isso, dentro desse deste texto, ousamos a fuga e assim foi-nos possível falar de forma implicada, não apenas do que nos une, mas também do que nos impossibilita de aproximar-mos umas às outras:

acho que me fez pensar muito e me colocou nesse espaço de incômodo foi quando […] comentou, nesse espaço de estar criando comunidade, a frase “como a gente cria esse espaço de compartilhar, que necessariamente passa pela confiança, com pessoas que talvez você desconfiasse pela falta de experiências?” Foi uma frase que me impactou muito. Essa frase ficou marcada e me fez sair da minha zona de conforto. Realmente entendo que a branquitude é lida de distintas formas [...] me fez ficar numa posição de… o processo de reconhecer meus privilégios nesse processo interseccional passa por experiências que eu efetivamente não vivo. Algumas delas pelo fato da minha cor de pele não me trazer experiências distintas [violentas] ao ir ao mercado, por exemplo. Passo por situações incômodas, mas elas não passam pela minha cor de pele. (W.P. L., 2020: 7)

é bastante embaraçoso esse exercício de falar o que incomoda. Eu tenho muita dificuldade. Mas… eu pensei no que me incomoda partindo dela […] e a reflexão foi sobre o tema da precariedade que ela aborda. Eu fico pensando “como você pode dialogar sobre precariedade a partir das suas experiências e lidar com seus privilégios dentro do que descreve como precariedade e com outros modelos de precariedade?” Porque, para mim, às vezes, a precariedade que a […] descreve me parece uma condição confortável diante do que é a minha precariedade, por exemplo. E isso não é uma crítica pronta, eu não sei como lidar com isso, porque eu penso também em outras experiências com minha mãe, por exemplo. Às vezes me lamento com ela sobre determinadas condições e ela me fala, “ah, pior é quem está doente no hospital… quem não tem comida…”. É sempre assim, você não pode reclamar porque tem gente em condição muito pior que a sua. E isso é uma violência. Então, como reconhecer que de fato existem situações muito piores do que a sua, não invisibilizar isso, mas também o quanto são legítimas as minhas dores, mesmo compreendendo os meus lugares de privilégios e que tem gente em condição muito pior do que a minha. (B.J., 2020: 7)

Os descentramentos que as nossas discussões originaram desde o nosso encontro no doutoramento levaram a repensar nossos lugares dentro dos campus universitários e nos invitaron a repensar nuestros propios temas de investigación. Como incluir, como redefinir, como fazer com que as nossas temáticas sejam “porosas a todos os fôlegos do mundo” (Césaire, 1983) De certa forma este descentramento permitiu também repensar a própria solidariedade e a autoria, porquanto, ao  aprender com as experiências alheias, ao reconhecer os traumas dos outros e respeitá-los, estamos, de certa forma, a criar possibilidades de âncoras poderosas entre as nossas investigações, o que nos leva a pensar as nossas teses como produtos de um trabalho coletivo:

para mim o mais impactante foi no Magusto quando ela […] nos pergunta se nós somos todos heteros e cisgénero. E eu pensei “realmente, isto não é uma questão” e depois eu pensei “mas não é uma questão porque tu assumes que as pessoas são iguais a ti, ou seja, hetero e cis, ou porque estás a tentar transmitir que é algo em que não reparas”, que é diferente. E cheguei à conclusão que sou eu que acho sempre que toda a gente é igual a mim, porque é mais fácil. Isso levou-me a pensar como é que vou incluir isso dentro da minha pesquisa. Toda a lógica do meu pensamento sobre a violência obstétrica e ginecológica estava voltada para a ideia da mulher hetero e cis, porque é aquilo com o qual eu mais me identifico. Não é como se eu fosse completamente ignorante em relação ao assunto, mas simplesmente nunca me tinha ocorrido trazer isso para dentro da minha pesquisa. Pus-me a pensar como vou trazer isso, porque a forma mais fácil que tenho de justificar o porquê de estar a fazer isto, é porque é algo que me atravessa como mulher. Como é que vou trazer vivências que não são minhas? Porque além do facto das outras sexualidades, também há a questão racial. E se a questão da raça já me tinha causado muito desconforto, ao pensar como é que vou tratar isso, estava a esquecer-me do mais óbvio - não é o mais óbvio, mas enfim - que é como pensar as diferentes sexualidades e diferentes formas de viver o género, quando se fala de justiça reprodutiva. Também me fez pensar sobre o nosso próprio desconforto em relação à pergunta. (B.L., 2020: 7)

Longe de ser um espaço totalitário, este coletivo que formamos não responde a todas nossas questões e preocupações quotidianas essenciais, vitais. Por isso, também nos apresenta o seu limite e o seu potencial, assim como o seu futuro, e depende da consciência que temos, ou não desses limites.

 

Horizontes

O que nos une? Parece-nos termos estado em sintonia quanto às perspetivas emancipadoras que vislumbram sociedades antirracistas, descolonizadas, descapitalizadas e despatriarcalizadas enquanto horizonte comum. Aproveitamos cada trilho, cada rota, cada pedra, cada encontro, cada paragem, cada porto… Cada retorno, cada recomeço. O projeto de costurar nossas experiências, memórias, lutas e conhecimentos cresce no espaço acadêmico do doutoramento e outros, além dele, e parte das possibilidades de encontros que este espaço nos gerou. Emerge, também, como uma maneira de questionar essa experiência doutoral, que se faz elo, apesar de termos perspetivas diferentes de como fazer isso. O presente apartado apresenta as reflexões finais do nosso processo, assim como algumas das (im)possíveis conclusões.

 

(H)aMar (h)a terra – afrofuturismo e afrotopia

Nesses caminhos, aprendemos a fazer da conversação, pontes, trincheiras e abrigos onde possibilidades são cogitadas e futuridades inventadas. Viemos de muitos lugares. Do ventre de navios que transformamos em terreiros já nos escuros porões, de terras colonizadas, de terras que colonizaram, de vales e montanhas. Somos, contudo, herdeiras de múltiplas resistências, partilhamos ancestralidades. No nosso percurso, escutamos as vozes dos quilombos, dos terreiros, das tabankas, dos marrons, todos os mayores y abuelos para podermos conhecer as artes de pensar e inventar futuros. Entre as utopias que aprendemos, trazemos aqui duas que estiveram presentes nas nossas conversações: o afrofuturismo e a afrotopia.

O afrofuturismo foi cunhado no início dos anos 90, por Mark Dery e define-se como uma ficção especulativa que trata os temas afro-americanos no século XX. Afrofuturismo pode ser amplamente definido como vozes de afro-existências com outras histórias para contar sobre cultura, tecnologia e coisas que estão por vir (Nelson, 2002: 9). Esta reflexão coletiva liga-se ao afrofuturismo ao identificarmos que desvencilharmo-nos do pensamento colonial restritivo e incapacitante, dá lugar à consciência das multidões de variadas possibilidades e probabilidades dentro do universo (Rollins, 2015: 1). Esses múltiplos universos incluem-se na forma como o trabalho foi concebido em termo de uma circularidade aberta, representadas pelo Adinkra Sankofa. Si el afrofuturismo nos invita a perspetivar futuros, la Sankofa, nos invita a compreender os caminhos das lutas e perspetivas que nos enlaçaram, revisitar os caminhos percorridos e quais rumos seguir. Assim, nossa primeira tarefa do encontro 9 foi imaginar quem seríamos se fizéssemos um retorno de duzentos anos na história.

Para duas das compañeras, essa volta a duzentos anos representava marcas muito profundas ligadas às violências da escravatura e da colonização. Uma de nosOtras lembrava como o seu apelido pressuponha a pertença a um escravocrata que teria esse nome, pelo que afirma que há 200 anos: “teria um outro nome, na minha própria cosmovisão africana. E ter esse outro nome não europeu, pressuporia ter uma série de outras possibilidades existenciais. [...]” (C.A, 2020: 9). Outra compañera também, lembra o passado colonial associado ao seu apelido, de origem italiana e possivelmente, também de um senhor escravagista. Ela contou também de como se reapropriou da alcunha ‘Arapuá’.[12] Davam-lhe esse nome, referindo-se ao seu cabelo crespo e volumoso. Com o novo significado, de abelha, o nome passou a ter um significado muito profundo e valioso. Voltando 200 anos atrás, ela pensa-se nascida, ainda, na América Latina, mas ao contrário da história de violência que acompanha a vida das suas avós e bisavós: “[…] quando voltei nesse tempo, renascia na América do Sul, mas não seria fruto de estupro” (B.J., 2020: 9).

A consciência das violências coloniais é parte fundamental para construções de caminhos de superação e transformação das estruturas alicerçadas por estas. É importante (re)conhecer as violências, que muchas veces nos anteceden e impiden la genuinidade entre nosOtras, manter vivas suas memórias, pois esse reconhecimento é imprescindível para a compreensão do presente e para perspetivar futuros justos, com tempos refletidos a partir de circularidade aberta. Ressaltamos, porém, o perigo de nos fixarmos nas memórias e experiências de violências, sem acolher e reconhecer resistências transformadoras, potencialidades criativas e de constituição de laços de afetividade.

Se é certo de que do convés dos navios se gerou a morte, do porão também se gerou vida e múltiplas formas de resistência. Também é certo, que houve quem talvez nunca tivesse visto o que havia além do horizonte marítimo. O passado é feito de vários lugares e as narrativas hegemônicas também escondem outros mundos, povos e relações afetivas. Não importa o lugar que ocupavam as/os nossas/os ancestrais, se formos incapazes de reconhecer a totalidade do passado como parte de nós. O diálogo entre o passado e o futuro joga-se nessa dualidade entre sabermo-nos parte de algo maior e reconhecermos as suas dissonâncias.

Foi com a proposta de nos pensarmos como parte dessa dualidade e desse futuro colaborativo que, no mesmo encontro, tivemos a tarefa de pensar: a partir das experiências individuais e coletivas e das ferramentas que utilizamos/criamos até o momento, para o fortalecimento das nossas lutas, como imaginávamos o mundo, e a nossa participação nele, daqui a 30 anos?

Em alguns de nossos relatos expressamos a dificuldade de pensar numa noção linear de tempo. A ideia de pensar no tempo futuro é atravessada por sua relação com as utopias e parece surgir em nós outras questões: quais são as utopias que consideramos possíveis neste tempo que foi referido na pergunta? A primeira de nós em intervir, por exemplo, sonhava com o fim do conflito armado en Colombia: “seguirán violencias, pero habrá siempre más islas pacíficas, que permitan otras construcciones y permitan la convivencia. Nos imagino como hormigas o abejas” (H.C., 2020: 9).  Para outra compañera (M.M.,2020: 9), a utopia passava pela aceitação não conformista do presente, de si mesma, dos que a cercam e do mundo, procurando a transformação, entendo que é um processo. Outra de nós imaginou um mundo de valorização da experiência individual para a construção do coletivo (B.L., 2020: 9). Outra manifestou que pensava o tempo futuro como uma potencial armadilha, por não existir e perguntava: “como é possível pensar em algo que não existe? A gente só pode pensar em algo que não existe pensando que será algo melhor que hoje, contemplado numa ideia de progresso, de desenvolvimento, de melhora” (W.P.L., 2020: 9). Uma das compañeras confessava que, trinta anos era muito próximo para crer em transformações estruturais, mas procurava manter a esperança, de uma nova reforma na saúde, no fim das violências de género e que “[não estivesse] tão cansada a ponto de desistir de lutar pela coletividade e seja mais uma a pensar só em mim” (C.K., 2020: 9). Por sua vez, uma compañera compartilhava que se imaginava ainda transitando na universidade: “una academia reflexiva, ʽsenti-pensanteʼ, ʽcorazondoʼ con las luchas que se siguen revelando contra las diferentes formas de opresión existentes” (A.M., 2020: 9). Pensando num futuro como professora, uma das compañeras descreve que “[…] me penso seguindo na luta por justiça social e justiça cognitiva. Creio que ainda será muito necessária, por isso, eu me penso sendo professora, e essas experiências já são parte desta luta” (B.J, 2020: 9).  Finalmente, um compañero, compartilha que avançar três décadas e convocar uma noção de futuro lhe criava uma improdutividade, mas que ainda assim: “este trabalho mostra que já estamos no futuro. E esse futuro que é presente e passado, está ainda em construção” (A.C., 2020: 9).

Diante de tantos incômodos e reflexões geradas pelo conceito - futuro, pensamos: “dialogar com um conceito mais abrangente, então?” Assim, embarcamos rumo à afrotopia. A Afrotopia é uma utopia ativa que perspetiva descobrir, na realidade do continente africano, seus imensos espaços de possibilidades, e fecundá-lo (Sarr, 2019). Este processo de descoberta passa também por um retorno às fontes, às raízes, e a partir dali construir uma África vindoura. Para Sarr (2016), a descolonização dos olhares deve fazer parte do projeto de construção de novas formas de cidadania no continente africano, a partir das quais vai ser possível definir estratégias e caminhos que possam garantir acesso à recursos para todas e todos do continente, colocando África num diálogo não subalterno a nível planetário. Em suma, Afrotopia propõe que África volte a ser como outrora, o pulmão espiritual do mundo. Porque Afrotopia? Porque África? Talvez por ser o continente berço da humanidade? Resposta muito óbvia e pouco satisfatória. Talvez por ter sido a incubadora das grandes civilizações a partir da qual outras surgiram? Resposta que não agrada a todas e nem gera consenso. Talvez porque foi e é o continente onde todos os tipos de visões de mundo se colidiram e se encontraram e todo o tipo de atrocidades foram experimentadas em primeira mão? Quiçá, pela sua porosidade a todos os fôlegos do mundo? Ou ainda, por ser onde tudo começou e a partir de onde tantos novos começos se desenham?

 

A circularidade

O trabalho coletivo nos reafirmou a importância de que os processos pedagógicos na academia, especificamente na formação doutoral tem de ser problematizados, sobre tudo aqueles que favorecem o individualismo e a competição. Desta maneira é necessário pensar sobre os processos avaliativos, o tempo da academia, a autoria na produção de conhecimento e a forma como o conhecimento acadêmico é produzido. Também a importância de espaços e processos de reflexão coletiva que permitam desvelar aquilo que normalizamos em nosso relacionamentos durante o processo de formação em clave de: raça, género, religião, classe (...) e que fazem parte de nossas formas de construir conhecimento desde o corpo, a experiência e as lutas e com isto também, apostar na construção de vínculos e solidariedades a partir do pedagógico.

Neste processo confrontamo-nos com os próprios problemas que apontávamos à academia, a falta de tempo, demasiadas questões sem termos a possibilidade de as aprofundar devido às várias demandas da produtividade académica. O tempo. O tempo de todas as nossas inquietações.

Talvez o que queríamos com este trabalho coletivo, era gritar e dizer que acreditamos que não precisamos e não queremos viver esta caminhada sozinhas, e assim, nos unimos, nos separamos, por vezes, nos repelimos, mas, há em cada uma de nós, perspetivas de horizonte que se constituíram como um cordão umbilical. Também em acharmos que temos uma responsabilidade social, até pelo lugar privilegiado em que nos encontramos e por isso concordamos com Paulo Freire em Pedagogia da indignação, quando nos diz que: “uma das primordiais tarefas da pedagogia crítica radical libertadora  é trabalhar a legitimidade do sonho ético-político da superação da realidade injusta” (Freire, 2000: 43), com isso queríamos reafirmar o nosso caminhar para o utópico.

Quando iniciamos a discussão sobre o fim deste trabalho nos perguntamos que nome e sentimento teria esse fim. Seria um ponto final com o trabalho entregue? Teria o nome conclusão? Acabaria com a produção de um material? Não soubemos ao certo responder como seria o nome e de qual forma terminar, mas soubemos de imediato que não seria com um ponto final. Por que, então, como Pepetela em A Geração da Utopia (1992), não terminar sem um ponto final?

Cogitamos a hipótese (essa também considerada uma proposição de possibilidade futurística) de não concluir nosso texto, pelo menos não da tradicional maneira académica a qual fomos adestradas a fazê-lo, mas de abandoná-lo temporariamente, deixá-lo repousar para que também repousemos. O abandono permite o eterno retorno. E se nos guiamos em uma jornada-Sankofa, por que não poder revisitar este texto que questiona o modo de criar conhecimento? Por que não o deixar aberto, poroso, recetível, viajável, mutável, desterritorializável para que mais mãos que as nossas 16 possam tecê-lo? Por que não permitir que a nossa análise não será completa, mas possível e aqui, neste tempo do agora e que neste tempo-agora podemos chegar até essa conclusão sem ponto final? Mais ainda, que podemos revisitar este trabalho, quantas vezes for possível, para que: “todos nossos encontros sejam lugares para voltar a ter esperança, para lembrar que em tempos de coronavírus nos reunimos para fazer esse trabalho coletivo, o qual eu já não creia possível, esse trabalho muito bonito que temos feito” (W.P.L, 2020: 9).

Portanto, abandonar nosso texto pode ser uma forma de reconceptualizar a ideia de abandono, uma forma de problematizar e recusar uma conclusão académica. Mais do que isso, abandoná-lo devem imprescindível, porque a conclusão faz do texto imutável, irrevisitável, hermeticamente fechado.

E ao fechar um texto com um ponto final o construímos como monumento, como dogma inquebrantável. Todas sabemos que os monumentos sempre podem cair, basta um empurrão. O abandono deste texto, assim, foge dos pedestais, das estátuas, dos monumentos e dos museus do conhecimento. Porque já sabemos que esses museus são só espaços em que se conservam as musas, espaços que as raptam, as encerram, as enclausuram. O que aprendemos nesse trabalho de reflexão coletiva é precisamente a necessidade de sair dessa clausura, porque as musas necessitam do diálogo ininterrompido, da conversação infinita que somente é possível a partir do nosso contacto e do nosso contágio. Desse diálogo entre nosOtras...

Dentro das utopias que nos unem, esse trabalho coletivo surge como uma tentativa de concretização de nossa ousadia, que aqui é evidenciar como academia, afetos, intimidade, memórias, espiritualidade constituem nosso processo de aprendizagem. Onde estão esses horizontes? Que horizontes são esses? Que lutas são essas? Quanto tempo é necessário? Não temos resposta. Convidamos-te, leitora e leitor, a gerar as tuas próprias questões e a pensar tu também a utopia, mesmo que – no fim de contas – não obtenhas nenhuma resposta.

 

Me tengo que ir[13]

Me tengo que ir, es muy tarde aquí,

Aqui é tarde e tem nuvens no céu,

Estou cansado de sonhar sempre nos mesmos lugares,

De repente embarco nessas nuvens para sonhar desde outro lugar,

Eu preciso sonhar de outro lugar para que a esperança seja um horinzonte possível,

Ese horizonte se hace posible si entendemos también la crítica como posibilidad de amarnos,

Crítica é afeto,

Afetos a ti, afetos aos ancestrais, afetos aos outros, o eu é um nosOtras,

Todo dia um dia um afeto-crítica vai nos assombrar,

Larguei a granada, mas no fundo queria fumar (outro) cigarro, desta vez acompanhado,

Acompanhado por nosOtras,

Com nosOtras consigo me afastar do abismo,

Estou exausta, mas vocês sempre conseguem me fazer sonhar.

 

Coimbra e muitos lugares, 13 de julho de 2020

 

Referências

Conversações entre nosOtras:

C.A. (2020), encontro 1 a 11

H.C. (2020), encontro 1 a 11

B.J. (2020), encontro 1 a 11

C.K. (2020), encontro 1 a 11

B.L. (2020), encontro 1 a 11

W.P.L. (2020), encontro 1 a 11

M.M. (2020), encontro 1 a 11

A.M. (2020), encontro 1 a 11

 

Conversações com Outras:

Anaquim (2016), “A estrada”, in Um dia destes. SPA. Consultado a 27 de maio de 2020, em <https://www.youtube.com/watch?v=YPNe8f53Bqs>.

Bâ, Amadou Hampaté (1976), “En Afrique, cet art où la main écoute”. Le Courrier de L’UNESCO, 2 (Février), 12-19.

Bâ, Amadou Hampaté (1985), Lettre à la jeunesse. UNESCO.

Bispo, Antonio Nego (2015), Colonização, quilombos: Modos e significações. Brasília: INCTI.

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Cabral, Amílcar (1974), Guiné-Bissau, nação africana forjada na luta. Lisboa: Nova Aurora.

Césaire, Aimé (1983 [1947]), Cahier d’un retour au pays natal. Paris: Présence Africaine Poésie.

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[1] Maribel Fernández Agudelo; Laura Brito; Jessica Bruno; Apolo de Carvalho; Claudia Howald; Manuela Meireles; Karla Costa; Luísa Winter Pereira.

[2] Este artigo é parte de um texto amplo de reflexão coletiva, realizado entre os meses de maio e julho do ano de 2020 como trabalho final do seminário Globalizações alternativas e reinvenção da emancipação social, coordenado pelos professores Boaventura de Sousa Santos e Bruno Sena Martins.

[3] Este documento é mais amplo, para este artigo os acordos serão apenas brevemente declarados.

[4] A Lei nº 12.711, de 29 de agosto de 2012, instituiu, no Brasil, reserva de metade das vagas a serem ocupadas em instituições universitárias, institutos e centros federais à estudantes autodeclaradas/os pretas/os, pardas/os e indígenas e por estudantes com comprovada vulnerabilidade socioeconômica, que tenham cursado o ensino médio em escolas públicas. “Visam [...] corrigir os efeitos presentes da discriminação praticada no passado, tendo por fim a concretização do ideal de efetiva igualdade e a construção de uma sociedade mais democrática para as gerações futuras. (Munanga e Gomes, 2006: 186-187). Estudantes beneficiárias/os desta política são comumente denominadas/os de estudantes cotistas, no Brasil.

[5] Serviço de Estrangeiros e Fronteiras de Portugal.

[6] Exibição do filme “O Regresso de Amílcar Cabral” de Sana na N'Hada. Após a exibição, debate com Alexandra Santos, Yussef e Marinho Pina, facilitado por Sílvia Roque. - 21/01/2020, no Teatro da Cerca de São Bernardo (Coimbra), disponível em <https://ces.uc.pt/pt/agenda-noticias/agenda-de-eventos/2020/os-regressos-de-amilcar-cabral>

[7] Nas palavras de Emine Sevgi Özdamar: “En el idioma extranjero las palabras no tienen infancia” (Özdamar, 1996: 58).

[8] Adinkras são um conjunto ideográfico. Símbolos que representam conceitos filosóficos, eventos históricos, provérbios e outros aforismos africanos que transmitem valores e princípios, assentes no espírito de união, de comunidade, de solidariedade. São saberes e visões de mundos.

[9] “Não há mal em regressar e apanhar o que se esqueceu” ou “em regressar para descobrir e reaprender”.

[10] “A emoção é negra, assim como a razão é helénica” (Senghor, 1939: 295)

[11] Lembramos-nos aqui como experiência significativa, a primeira aula de apresentação com a professora Maria Paula Meneses, na qual nos perguntou: qual é o seu trauma? e essa pergunta mudou a dinâmica da apresentação em que dizemos comumente o que estudamos, onde trabalhamos sem pensar nisso que motivo-nos profundamente a escolher o doutorado.

[12] “[..] descobri recentemente que arapuá é o nome que comunidades tupi-guarani dão para uma espécie de abelhas” (J.B., 2020: 9)

[13] Poema coletivo criado no encontro de socialização como mística de encerramento após apresentação final e discussão deste trabalho. Cada frase é da autoria de uma das compañeras, compañeros e do professor Bruno Sena Martins (conversações entre nosOtras, 2020: 11).