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Este número d’O Cabo dos
Trabalhos, Revista Eletrónica dos Programas de
Doutoramento do CES, FEUC, FLUC e III, foi
coordenado por Bruno Costa, Laura Brito, Lior Zisman Zalis
e Luciana Martinez, estudantes da turma 2019/2020 do
Programa de Doutoramento “Pós-Colonialismos e Cidadania
Global”.[1]
Centrados na condição fronteiriça dos
conhecimentos situados, no reconhecimento da violência que
produz constantemente os axiomas da modernidade e na
necessidade de orientar uma produção teórica no marco do
Sul Global, os trabalhos aqui expostos são, antes de tudo,
um processo coletivo de pensamento. Desenvolvidos no marco
das aulas de doutoramento, impulsionadas por um processo
de trocas de saberes e experiências entre alunos e junto
aos professores, estes ensaios assentam-se no pensar-com.
Enquanto alguns contextos acadêmicos mostram-se como
espaços que podem ser hostis ao comunitário, contaminada
(para usar a palavra da vez) pelo individualismo e pelo
pensamento solitário, este editorial afirma-se diante da
intransponibilidade do compartir. Nenhum pensamento é
solitário se se reconhecem as vozes que o amparam, suas
interlocutoras e as trocas que permitiram sua elaboração.
Da mesma forma que suspeita-se e luta-se contra a falácia
do indivíduo autônomo e independente, combatemos as ideias
que impelem o pensar sozinho através do movimento de criar
espaços para pensar com outras. Assim, o espaço no qual
produziram-se, apresentaram-se e discutiram-se as
reflexões aqui expostas inscrevem-se no que certa vez
Georges Didi-Huberman, referindo-se aos vaga-lumes, chamou
de “dança dos afetos que formam comunidade”, esse encontro
de corpos em movimentos, ainda que sejam movimentos nas
cadeiras, gestos nas salas, corpos sentados que
levantam-se ocasionalmente, corpos que, na educação
docilizadora das universidades, constroem corpos coletivos
como podem.
Somos de países diferentes, falamos línguas
diversas e a trajetória individual que levou cada uma até
este doutoramento também é bastante singular. E nossas
diferenças ajudaram a criar um ambiente de troca e
discussão em sala de aula múltiplo e enriquecedor. Entre
bolos, chocolates e broas, dividimos nossas inquietações e
descobrimos que, mesmo num grupo tão heterogêneo, havia
vários temas em comum. Entre nossos debates, foi
recorrente a discussão sobre racismo, movimentos sociais e
as possibilidades de trazer lutas pessoais para nosso
trabalho dentro da universidade. Memória, religião e
identidade também se revelaram pontos importantes de
muitas das investigações aqui desenvolvidas. Neste
ambiente, vimos parcerias serem criadas e trabalhos
ganhando novos rumos.
É impossível terminar este editorial sem
nos referirmos à pandemia da COVID-19. Como muitas, um
pouco por todo o mundo, fazemos parte das privilegiadas
que tiveram a hipótese de se proteger da infeção e ficar
em casa, tendo a possibilidade de continuar a assistir às
aulas por videoconferência. Isso refletiu-se no nosso
trabalho académico, na nossa saúde física e mental, mas
também na nossa forma de olhar o mundo e pensar certos
temas que se debateram nas aulas. Terminamos o ano letivo
2019/2020 com a certeza de que o ensino presencial, a
conversa, o contacto social –físico– é essencial para uma
academia que se queira emancipadora. Pensa-se com o
cérebro, mas também com o corpo e as emoções e o digital
torna esse processo não só acético, como estéril. Soluções
tecnocráticas não são a resposta a todos os problemas da
vida, até durante uma pandemia de uma doença
infectocontagiosa. Fica a esperança de rapidamente
podermos voltar para o fervilhar de uma sala de seminários
onde nos possamos ver, pensar e conviver sem medidas de
contingência.
Esta edição foi dividida em várias secções
que refletem, simultaneamente, a diversidade de temas, mas
também o terreno partilhado, ou em comum, entre eles.
Assim, organizamos a revista separando uma secção dedicada
a entrevistas, com um autor que dialoga à distância com
todos os trabalhos, e quatro secções dedicadas aos artigos
escritos pelos estudantes deste programa:
Pensar a partir do arquivo
No seu texto, “Representações de África
e das pessoas negras em tempos de pandemia: A biblioteca
colonial do vírus em contestação”, Apolo
de Carvalho guia-nos numa viagem pelos arquivos de
imprensa dos últimos meses, analisando as narrativas e
discursos sobre a forma como, dentro do continente
(África), se tem lidado com a pandemia da COVID-19 e como
os movimentos sociais negros e africanos têm procurado
afastar-se de determinadas representações, propondo visões
emancipatórias. O autor argumenta que, tanto as narrativas
afropessimistas, como as narrativas afrootimistas, são
problemáticas num contexto de luta contra a pandemia; que
a própria situação pandémica é reveladora da colonialidade
moderna e que são os movimentos sociais, com as suas
práticas insurgentes, que criam alternativas
emancipatórias à opressão.
O texto de Bruno Costa, “Recordar o
futuro: um arquivo sobre imaginários nacionais
palestinianos”, recupera um arquivo de
práticas estéticas que arde na especulação da construção
de uma identidade marcada pela violência sistêmica do
colonialismo israelense e pelo exílio e trânsito forçado
do povo palestiniano. Construindo um imaginário na
fragmentação das expressões sensíveis de artistas
palestinianos, Bruno Costa afirma a condição da arte não
apenas como exercício de liberdade ou ferramenta para a
produção de horizontes e futuros, mas como espaço
privilegiado para experimentar o ser e compreender os
desafios, contradições e possibilidades da identidade de
um povo.
Lior Zisman Zalis em “A Memória
Colonial do Fetichismo”, faz uma leitura
a contrapelo da história da palavra ‘fetichismo’ através
da sua utilização para a manutenção das relações coloniais
na costa oeste africana, no Caribe e na América Latina.
Assume a palavra como arquivo e como conceito complexo e
contraditório. Um texto que imerge na história colonial
esquecida do fetichismo e que propõe olhar-se para ele
como uma ferramenta analítica a partir de onde se pode
pensar a transversalidade das práticas em espaços
coloniais.
O texto de Manuela de Carvalho Meireles, “Entre
o passado e o futuro: Umbanda, hibridismo e critica
pós-colonial”, discute a história e os fundamentos
da Umbanda no contexto brasileiro e na sua formação
sociopolítica. Orientado por um saber corporal da autora e
demarcando a sua cosmologia, Manuela de Carvalho Meireles
anuncia as possibilidades políticas, sociais e históricas
que a prática da Umbanda oferece ao contexto brasileiro.
Expondo as suas contradições e problemáticas, atravessando
o racismo estrutural contra os negros e indígenas,
reconhece na Umbanda o espaço da coexistência espiritual e
da luta por superação das injustiças históricas e
epistêmicas que marcaram a construção do Estado e da
sociedade brasileira na sua pluralidade.
Lugares de r/existência/s
Num diálogo permanente de quem partilha uma
vida, Claudia Howald e Miguel Ramírez, em “Artesanías:
teatro-pedagogía e investigación social en las luchas”,
abrem uma janela para o interior das lutas sociais e suas
infinitas expressões políticas e epistemológicas. A partir
da obra dramatúrgica Mal escogidos: encuentro y
desencuentro de los dioses (2008), os autores
pensam também novos modos e métodos que permitem articular
uma crítica complexa às múltiplas violências que
atravessam as comunidades da região do Pacífico
colombiano.
Jessica Santana Bruno, no seu texto “Ações
afirmativas face ao silenciamento: mudanças e
perspetivas no cenário brasileiro”, através da sua
própria experiência no coletivo de pesquisadoras negras Angela
Davis - Grupo de pesquisa em gênero, raça e
subalternidade (UFRB), mostra-nos como se pode
contrariar os legados da racionalidade colonial que
silencia os trabalhos intelectuais de negras e negros nas
universidades brasileiras e a importância destes corpos
ocuparem o espaço académico, de modo a mostrar como a sua
experiência ancestral é da maior importância contra um
conhecimento mercantil.
Em “O calar de vozes da participação
social no Brasil”, Karla Costa e Paulette
Cavalcanti, pensam o processo em curso de
desdemocratização e desarticulação das lutas sociais no
Brasil. Podemos dizer que neste artigo, além de arriscarem
uma crítica direcionada aos discursos e práticas
neoliberais da governação no Brasil contemporâneo, as
autoras se solidarizam com todos os que se opõem a esta
dinâmica autoritária.
Luísa Winter Pereira desenvolve uma crítica
à universidade em seu artigo “Epistemonormatividade:
entre falas, injustiças e cuidados”. A partir da
noção de cuidadania acadêmica, a autora traça
caminhos para a construção de um ambiente menos solitário
e competitivo entre pesquisadores, docentes e discentes.
O texto de Maribel Fernández Agudelo, “Espacios,
conocimientos y resistencias: Una mirada al cambio
climático desde la justicia cognitiva”, mobiliza
vozes daqueles que lutam cotidianamente por uma justiça
ambiental, que, por sua vez, é uma justiça cognitiva e
histórica. Frente ao antropoceno e ao seu vocabulário
pós-moderno, Maribel Fernández Agudelo reivindica uma
ciência ancestral das práticas e dos discursos dos povos
indígenas colombianos. Estes que, muito antes deste
movimento ecologista, criam condições de possibilidade não
apenas para lidar com a chamada crise climática, mas para
pensar o humano em relação aos outros não-humanos. Nesse
sentido, não se trata apenas de um fazer, mas um fazer
orientado por um ser e um estar, uma transformação na
prática que deve pressupor uma transformação
epistemológica e ontológica na maneira de compreender o
que é a natureza e o meio ambiente.
Identidade é o tema central do contributo
de Priscilla Brasil. Em “Direitos para invisíveis:
territórios e categorias identitárias na Amazônia
brasileira”, a autora narra como comunidades
quilombolas da Amazônia precisam negociar a todo tempo sua
identidade cabocla e ribeirinha para garantir a demarcação
de terra.
Discursos e representações
Em “O fardo da bata branca: a
biomedicina e a representação do Outro no projeto
colonial”, Laura Brito mostra que a biomedicina e o
discurso científico foram mobilizados durante a
colonização como mecanismos de controle e dominação de
populações colonizadas em África.
Interpelada pela cidade que cruza grande
parte das suas memórias, Luciana Martinez pensa o Rio de
Janeiro e particularmente a favela carioca a partir da
literatura crítica sobre o cotidiano. Em “Cotidiano e
favela carioca nas obras de Eduardo Coutinho e Geovani
Martins”, a autora faz uma leitura sensível que, a
partir de uma aproximação ao “mundano” como escala de
resistência, se afasta das representações hegemónicas
sobre a favela carioca e seus moradores.
Metodologias e diálogos
O texto, “Caminhos percorridos e
entrelaçados: do individual ao coletivo”, escrito
pelo Coletivo nosOtras apresenta uma reflexão a
quatro tempos - Caminhos, Memórias, Teceduras, Horizontes
- sobre o(s) passado(s) pré-programa doutoral e o(s)
futuros(s) utópico(s) e suas possibilidades através da
academia. Este ensaio é também um registo reflexivo da
experiência de se ser doutorando, com todas as suas
dúvidas, dificuldades e ensinamentos.
Entrevistas
Por fim, a entrevista com Mário Lúcio,
coordenada por Apolo de Carvalho, expõe não só o percurso
de vida do autor cabo-verdiano, como também invoca a sua
perspetiva sobre negritude, crioulização, reparação
histórica, memória e espiritualidade. A partir da sua obra
O Diabo foi meu padeiro (2019), Mário Lúcio
Sousa faz-nos refletir sobre a forma como nos relacionamos
com o nosso passado e futuro, mas também com os que
partiram. Uma conversa rica que nos convida a refletir
sobre a importância da solidariedade e dos afetos na luta
contra as injustiças.
Coordenação Editorial
Bruno Costa /// Laura Brito /// Lior Zisman
Zalis /// Luciana Martinez
[1]
O Programa de Doutoramento “Pós-Colonialismos e Cidadania
Global” (Centro de Estudos Sociais e Faculdade de Economia
da Universidade de Coimbra) abre candidaturas bienalmente,
teve início em 2004/2005 e é acreditado pela Agência de
Avaliação e Acreditação do Ensino Superior de Portugal
(A3ES).
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