Entrevistas
 

 
   

“A redução do Outro como reflexo da incultura”[1]: conversa entre Mário Lúcio Sousa[2] e Apolo de Carvalho[3]

“La reduccíon del Otro como reflejo de la incultura”: charla entre Mário Lúcio Sousa y Apolo de Carvalho

“The reduction of the Other as a reflection of inculture”: talk between Mário Lúcio Sousa and Apolo de Carvalho

 
Créditos:
Nuno Cirenza, Rádio Universidade de Coimbra (RUC).

Apolo de Carvalho – Saudações a todas as presenças que de alguma forma aqui se manifestam. Un botardi muito especial ao convidado que aqui nos reúne, Mário Lúcio. Obrigado à professora Catarina pelo convite para fazer a apresentação da pessoa, do autor, deste mais velho de aura anciã, esta referência imensa que é Mário Lúcio.

Se o ato de apresentar é meramente formal, porque de certa forma já conhecemos e já ouvimos o convidado, a responsabilidade não deixa de ser grande. Não só porque me sinto uma espécie de liliputiano perto de um gigante, ou porque normalmente cabe aos velhos, os mais sábios, os Griots, os Djidiu e Djelis – coisa que não sou iniciado – falar sobre grandes homens e dos seus feitos, mas também, porque é extremamente difícil apresentar quem é e encarna muitas coisas e existe sendo. Quem de certa forma circula, ou peregrina na sua própria existência, quem incorpora e desincorpora. Espero, com respeito, conseguir fazer justiça a esta grande biblioteca, a esta imensa orquestra humana que me cabe, então, falar um pouco sobre. 

Ontem, enquanto ouvia o lindíssimo e já nostálgico concerto de Mário Lúcio, lembrei-me do apelo que Amadou-Mahtar M'Bow fez num discurso na UNESCO, em 1987, onde dizia: “Dirijo-me com grande emoção e esperança aos artistas, aos escritores, aos poetas, aos cantores para os convidar, em todo o lado, a testemunhar que os povos também precisam de existir na imaginação, no imaginário.”

Há dias via um vídeo produzido por uma grande artista negra portuguesa, Raquel Lima, onde, juntamente com a mãe, respondia à pergunta: o que é essencial em tempo de pandemia? Ontem, ao ouvir Mário Lúcio, esta imensidão poética que, usando as palavras de Césaire, nos convida a sermos porosos a todos os sopros do mundo, fiquei a pensar que, se calhar, o essencial é a arte e a cultura. A arte de viver, de imaginar, de se reinventar, de desenrascar. A arte de se curar, a arte da palavra, a arte do encontro, a arte do com-versar com versos. Artes estas, vistas como supérfluas, como desnecessárias e improdutivas em tempos como estes, onde prima uma política do ventre, que esquece que até o comer, o alimentar-se, é também um ato e um fazer poético.

Ilha di Santiagu ten Bibinha Kabral, nha Nasia Gomi nhu Ariki, Kodé di Dona, nhu Anu Nobu, Nha Balila, ma tanbi, ten Mário Lúcio, ki ta bisti só di branku sima Obatalá, ki nasi la na Tarafal, un Téra di munti djentis grandi, ki prendi skrebi na txon, ki, desdi mininu ta kontaba ti mil, ki dadu gasadju la na Kortel di Txon Bon, ma ki fasi morada la na Kasa Bedju.  Un omi ki na kada konbersu kantadu, skredu o pintadu, ta da un konsedju. Ilha di Santiagu ten Mário Lúcio ki ba Kuba ki torna ben, pa podi fasi Simentéra, pa Azágua podi dá. Es Mário Lúcio ki na tudu petu ki e toka e ta festa bedju i ta po-nu fika tudu kontenti. 

Cabo Verde, Ilha de Santiago, Tarrafal, terra de pedras e poetas, tem poetas que são ministros, deputados e presidentes. Tem caminhos construídos, com pedras lapidadas por libertos e cativos, mas também tem o Mar. Este que salgou o sangue das suas gentes, como canta Ovídio Martins, e, talvez por isso, a sua poesia e os seus ritmos, a sua musicalidade, a sua memória, são também MA-rítmicas, oceânicas, atlânticas. Porque afinal, como diz Mário Lúcio, os cabo-verdianos são filhos do mar. O mar é mais do que uma metáfora, ela é uma realidade que está presente na poética vivida de Mário Lúcio. 

Hoje, dia 14 de outubro de 2020, faltam precisamente 7 dias para comemorarmos o dia em que Nha Zita deu à luz Mário Lúcio, um ser novo que, como que predestinado a partejar uma escrita nova, veria a publicar Nascimento de um mundo (1991), uma inédita ode às dez ilhas. Mário Lúcio nasceu em 1964, no Tarrafal, na altura, ainda uma colónia penal. É comum ouvirmos dizer que Cabo Verde é um país que tem apenas dois momentos históricos. O período colonial e o “pós-colonial”. Na música “Goré”, do álbum Badyo, Mário Lúcio pergunta “underis kes mosinhus ki bai?”. Na música são citados vários nomes de povos africanos, tais como Mandinga, Mandjaku, Fula, Ifé Wolof, Yoruba, entre outros. Povos esses que que estariam na génese do próprio povo cabo-verdiano. Em entrevistas, Mário Lúcio disse uma vez que estuda a cultura para poder perceber a sua própria pessoa, e que o papel da cultura é lutar contra a ignorância. No seu texto sobre a cultura, apresentado à UNESCO, em 1972, Amílcar Cabral dizia que a luta pela libertação era, em si, um ato de cultura e que as manifestações culturais são poderosos instrumentos de informação e formação. Para Cabral, a luta contra a ignorância e pela descolonização das mentes são, em si, processos culturais que levam à libertação. Uma libertação mais ampla, que não se resumiria a ter um hino e uma bandeira e que, por isso, não se podia encarar como a independência formal das colónias. Cabral dizia ainda que, se pudesse, fazia uma luta sem armas, só com livros. 

Cabral, enquanto ideia, enquanto pensamento, é hoje muito útil para pensarmos os desafios dos nossos dias. Essas realidades cada vez mais emaranhadas umas nas outras. Kabral ka mori é o título de um poema de Manuel Braga Tavares, lido por Mário Lúcio, ainda criança, como que dizendo: a causa não morreu. Sinto na arte de Mário Lúcio, nos temas que trabalha, uma contribuição imensa para uma luta contra a ignorância, pela descolonização das mentes e pelo resgate de uma noção mais profunda e mais ampla de humanidade e pela vitalidade das causas pela vida. 

Essa contribuição é feita de várias formas, de manifestações e linguagens. Há, em Mário Lúcio, uma poética, se quisermos, uma voz artística, multiforme e de certa forma, griótica, também. Não tivesse ele sido criado numa terra cheia de contadores e contadoras de histórias. Essa voz poética pode ser ouvida, porque é música, pode ser lida porque ela é escrita, pode ver vista porque ela é pintura e pode ser, também, contemplada e sentida, porque a sua voz é uma voz que muitas vezes se cala, que murmura sons sem palavras. É uma voz que se desmaterializa, que nos convida à meditação, a uma conversa entre silêncios. Há no labor poético de Mário Lúcio, uma forte dimensão do sensível. Dimensões estas que convocam várias temáticas ligadas aos sentidos da inexistência do homem e da mulher de Cabo Verde, e do nosso lugar no mundo. A questão do local e do universal, do individual e do coletivo, a memória e história, o trânsito, o lugar, o rasto ou o vestígio, como diria Glissant, estão amplamente presentes.

Estamos, então, face a um artista eclético, plural. Mário Lúcio compõe músicas, dirige orquestras e toca vários instrumentos. De ressaltar que foi fundador dos Simentera, um grupo musical de grande referência em Cabo Verde e, no meio de tudo isto, teve ainda tempo para o labor político, no sentido da gestão e governação do Estado. Foi deputado e Ministro da Cultura de Cabo Verde, na anterior legislatura, e esteve à frente de grandes projetos, como a Atlantic Music Expo – que reúne anualmente vários artistas do mundo, profissionais do sector artístico, investigadores, em torno da música e de outras artes. Fez de Cabo Verde uma plataforma giratória da arte. Esteve também à frente de planos de conservação do campo de concentração de Tarrafal, um dos projetos que lhe é ainda muito caro.

É interessante que, mesmo sendo ministro, a poesia sempre esteve presente no seu fazer. Em 2011, numa intervenção no parlamento cabo-verdiano cantou a morna Doce guerra, do compositor Antero Simas, para apelar a um pacto cultural de longo prazo, solicitando, também, a oficialização da língua cabo-verdiana.

Com Mário Lúcio, a poética, a poesia, além de serem em si produção de conhecimento, são também metodologias de transmissão desses conhecimentos. O seu livro O diabo foi o meu padeiro (2019) é exemplo claro disso. Embora sendo um romance, tem um registo documental, que nos informa sobre factos históricos que dificilmente nos penetrariam como outros livros de história, com uma linguagem mais académica, poderiam fazer. Vulgariza o conhecimento de uma forma mais digerível. 

Os seus livros circulam entre poesia, teatro e romance, pelo que o autor recusa qualquer tipo de catalogação. Nascimento de um mundo novo (1990), é um dos seus livros de poemas, com poemas das dez ilhas de Cabo Verde e é considerado uma obra prima que faz uma viragem na poética cabo-verdiana. Escreveu Novíssimo Testamento (2009), Biografia da língua (2015) e, um dos mais recentes trabalhos, de certa forma relacionado ao seu primeiro livro, Nascimento de um mundo novo, é o Manifesto da crioulização, que está em fase de publicação. Já em algumas entrevistas tem falado sobre a temática da crioulização, que diz respeito à identidade das pessoas cabo-verdianas, ou das pessoas das ilhas. De referir o belíssimo trabalho, o álbum Kreol, uma coletânea de músicas dedicadas ao Oceano Atlântico – esse património da humanidade, como lhe chamou. Nesse álbum, conectado ao documentário realizado por Frédérique Menant, Mário Lúcio refaz as rotas da escravatura. Percorre os portos, as ilhas, os países, os caminhos, como um ato de recuperar esses vestígios, junto de artistas de várias latitudes. Encontrou pessoas como Édouard Glissant, autor do Manifesto Antilhês e uma referência incontornável nos estudos crioulísticos.

Como disse, apresentar o autor é uma tarefa difícil. Ele é muitas coisas, faz muitas coisas, e ainda bem. Num mundo onde estamos tão acostumados a ter caixinhas e catalogações, Mário Lúcio é, nesses espaços, alguém que nos convida a respirar. No documentário Kreol (2010), Glissant define crioulização como “a força de reconstruir, a partir dos traços, sem ser prisioneiro dos traços”. Segundo Glissant, há o eco dos traços, mas não somos prisioneiros disso. As músicas não são músicas que nos fixam, mas músicas que nos projetam para outro espaço. Acho interessante a forma como Mário Lúcio nos convida a viajar entre os tempos, passado, presente e futuro, sem ser prisioneiro de um tempo em específico. Existir sendo.

Pegando nessa questão do Glissant, traria, também, a Negritude de Césaire. Césaire diz que “a negritude não é uma metafísica, não é uma conceção pretensiosa do universo. É um modo de viver a história na história. A história de uma comunidade cuja experiência aparece, a bem dizer, singular com as suas deportações de populações, as suas transferências de homens de um continente para o outro. Memórias de crenças longínquas, restos de culturas assassinadas”. Lanço essa pergunta: Mário Lúcio, como é que a Negritude conversa com a crioulização e se existe antagonismo?

Mário Lúcio – Boa tarde, meninos, meninas, a terceira possibilidade de ser menino e menina num só, e a quarta possibilidade de não ser nenhuma dessas coisas, e que tenhamos de descobrir o que poderia vir, e que seja bem-vindo. Agradeço a vossa presença, estou aqui mais para ouvir, pelo menos as perguntas. Para partilhar. Apolo fez uma pergunta, inicial, e uma série de perguntas. Começou pela "negritude", perguntando que relação tem ela com a crioulização. A negritude foi um movimento dos anos 1960, liderado por Léopold Sédar Senghor, poeta que veio a ser presidente do Senegal e que influenciou toda uma geração de pensadores, entre eles, Amílcar Cabral, o herói de Cabo Verde e da Guiné Bissau. Esse movimento era necessário, porquê? Porque estávamos num processo, longo, de opressão, que começou no século XV, com o tráfico dos escravos negros. Esse processo segue, depois, para a colonização, o espartilhamento de África na Conferência de Berlim, desemboca na Primeira e Segunda Guerra Mundial, enfim, uma catadupa de eventos que impediu que houvesse um momento de reflexão sobre esse mesmo processo. Surge então, na sequela das guerras, dos traumas e das aprendizagens, os movimentos independentistas, as independências das antigas colónias, o momento de chamar atenção para um fenómeno que estava silenciado há 500 anos: a redução dos negros. Reuniram-se um pouco por toda a parte, líderes africanos – como Léopold Sédar Senghor, que fez uma antologia da poesia negra, africana e malgaxe (língua de Madagáscar) – influenciam toda uma geração de pensadores, e chegam à Martinica e a Guadalupe, onde havia crioulos com dilemas sérios de identidade. A negritude fazia apologia do negro, porque era necessário naquela época. “Nós existimos, somos iguais, temos esses méritos, descubra civilizações como o Império do Mali, saiba o que é o Tombuctu, saiba que temos uma História grande, como todas as histórias regionais ou continentais. Mas, chamando a atenção para o seguinte: essa tipologia da espécie, por ter a pele negra ou pertencer a um continente, tem sido vítima de uma grande desinformação intencional”. Em primeiro, foi criada a teoria das raças, criado pelo alemão Norton. Foi-lhe pedido, como cientista, para justificar a escravatura. Para justificar isso, teve de catalogar os humanos em raças, em grupos. Os caucasianos, em primeiro lugar; depois os indo-europeus, os indo-asiáticos. Quando chegou a África, deparou-se com um enorme problema. Queria meter toda a África num saco, mas não dava. Tinha o Egipto, cuja história não se podia apagar. Tinha a Tunísia, que tinha sido parte do Império Romano, tinha dado dois imperadores a Roma, e tinha toda a civilização do Magrebe. Então, teve a ideia de chamar “raça etíope” a esses ali e, do rio Níger para baixo, chamar-lhes “os negros”. Esses eram, praticamente, não humanos, na teoria de Norton. Assim, justificou que os negros fossem tratados como mercadorias e animais. A ciência já provou que a raça não existe. Nem genética, nem culturalmente. Geneticamente, somos homo sapiens e, culturalmente, somos a humanidade. É pela cultura que podemos encontrar diferenças que nos enriquecem pela multiplicidade. Chega um momento em que a negritude não pode ser invocada como razão de apologia. Ainda continua, porque certas sociedades precisam de chamar a atenção para o fenómeno. Dentro da democracia da existência, eu acho melhor defender a minha existência na relação com o Outro, porque respeito as diferenças do Outro. Quem fala da negritude, tem de ouvir quando alguém se levantar e falar da branquitude. Nós, hoje, estamos numa crispação social, mas isto é cíclico. Há 100 anos, havia pessoas de pele mais clara que diziam “Nós, os brancos…” e as pessoas ouviam caladas. Aquele que era negro nem se atrevia a dizer: “olha, eu também estou aqui”. Hoje, ouve-se: “eu sou negro. Eu sou raça negra. 100% negro. Vivam os negros!”. Ótimo! Mas se um branco se levantar e disser “eu sou branco. Viva o branco”, ele é racista. A minha postura é de evitar esses radicalismos. E a luta da crioulização, a luta contra o racismo, a luta de qualquer causa, não supõe o aspeto visual, mas o conteúdo que não é visível. Nós, que estamos a lutar contra o racismo, podemos ter exemplos surpreendentes, de passar na rua, ver um negro e dizer: “Meu amigo, vem cá! Estamos a lutar contra o racismo, vem fazer parte” e ele dizer, “não, não. Eu sou neonazista, convicto”. Porém, de repente, vem uma pessoa branca e diz-te: “Apolo, eu vi-te na televisão a falar do racismo. Eu também sou contra, também quero fazer parte da tua luta”. E aí? A cor caiu por terra. Nesse processo, é preciso distinguirmos o sujeito-objeto sobre quem recaiu a discriminação da causa contra a objetificação do sujeito. A causa é lutar contra o preconceito e contra o racismo. Nessa causa, venham todas as cores, que comunguem esses princípios comuns. A cor aqui serve para aumentar a paleta da diversidade, mas que venha com a cabeça incolor. Venha com a alma clara e cristalina. Venha com a fé luminosa, o coração generoso. Daí que, quando falo da crioulização, não estou a falar de ancestralidade. A ancestralidade serve-nos de referência, mas qualquer passado que aprisiona tem um condicionante. É melhor um futuro que liberta. Nós podemos projetar a nossa identidade no futuro. A luta, hoje, impõe que, inspirados nos nossos ancestrais, todos – vikings, bantu, ioruba, mandiga – as 2000 etnias que existem em África, mais os gauleses, os normandos, os bretões…portugueses, ibéricos, os gregos, os troianos, os macedónios, que venham todos. Cada um com a sua ancestralidade para que, em vez de nos separarmos, como lá atrás, projetarmos uma identidade futura, onde possamos conviver. Com diferenças, mas num espaço comum. Um exemplo que dou é a nossa própria experiência da crioulização. O que é ser um crioulo? Édouard Glissant dizia, o crioulo “c’est le métis plus quelque chose”.[4] Nós evoluímos da negritude para a mestiçagem. Já foi um grande avanço. Por isso é que Bernabé e Chamoiseau, inspirados em Aimé Césaire – que defendia a negritude dentro de uma ilha crioula – defendiam a crioulização da própria ilha. Eles falavam da Crioulidade. La creolité.[5] Sempre que se fala de uma característica, “crioulidade”, “negritude”, “portugalidade”, “cabo-verdianidade”, estás a catalogar e a criar uma caixa. Quem não tem esses valores ficam fora dessa caixa. Pode se relacionar com outros tantos valores, mas tem de admitir que quem fala de cabo-verdianidade, aceite sem complexos que o outro fale da sua portugalidade ou brasilidade. Esta é a democracia, racial, inclusive. Permitir que o outro seja. Se não estamos a permitir que sejamos, não podemos usar a mesma arma. Temos de convencer o outro que ele não está a permitir que eu exista, convencê-lo de que tenho o direito de existir, das minhas razões da igualdade da existência, e permitir que ele também exista e se mostre. Se é para eu existir para eliminar o outro, prefiro não existir. É esta a minha convicção búdica. Seria bom que projetássemos uma nova postura, que se chama identidade terceira e identidade futura. Sermos capazes de começar a construir uma identidade nova, despida de identidades manchadas que já existem, mas evidente, na relação com todas as identidades, e com a nossa própria identidade. O processo passa de negritude para creolité e da creolité para crioulização. Glissant, dentro da mestiçagem, defende o nome “crioulização” e não “crioulidade”, pois este último é fixo e crioulização é um processo dialético. Estamos num processo de crioulização, todos nós. O crioulo não precisa necessariamente de ser mestiço, no sentido curto do termo. Mestiços seremos todos, ou já fomos. A mestiçagem é uma contingência genética, resultado de duas pessoas de tipologias diferentes, segundo a geografia da sua vivência. Por isso essa diferença, essa diferença de paletas visíveis. Isso é mestiçagem. Crioulização, a postura, é a resposta aos dilemas. Toda identidade, nas minhas reflexões, vem da resposta que damos aos dilemas. Seja a identidade genética, ou racial, individual, sexual, política ou outra. Nós temos dilemas e respondemos aos nossos dilemas com uma afirmação e isso é a nossa identidade. Também, na cultura, ser crioulo é essa resposta. É uma identidade nova, que começa a surgir no século XV, que se projetou e que hoje existe por toda a parte. Crioulo é um espaço cultural e identitário, onde todos os que quiserem caber têm lugar de inclusão para partilharmos a existência, a beleza de existir. Isso não tira que, dentro do espaço crioulo, continuemos as lutas para o reconhecimento dos valores de cada cultura. Dentro do espaço crioulo há quem despreze a cultura negra como convenção. Não existe, cientificamente, uma cultura negra, mas utilizamos o termo. Há também quem despreze o outro, dizendo que esta “precisa de apanhar sol”, ou acha a menina “muito deslavada”, ou “precisa de desfrisar o cabelo”, ou “enrolar o cabelo”, ou cortar…enfim! Coisas tão…palpáveis e minúsculas, detalhes, dentro da grande natureza da existência.

Apolo de Carvalho – Também é interessante trazer aqui a questão de Cabo Verde, pensando em vários movimentos como Black Lives Matter, o Rhodes Must Fall. Tem surgido vários movimentos com um certo pendor panafricano – na minha opinião – que  se afirmam, não só contra as estátuas, mas  também contra a morte de pessoas, pessoas negras e que pedem, inclusive,  uma outra história no espaço público. Pergunto: como é que a crioulização pensa questões como a reparação e que tipo de reparação é essa? Achille Mbembe dizia que a reparação tem de ser reivindicada porque nada é reparável, mas nada sendo reparável nós temos de exigir essa reparação. Como é que pensa essas questões?

Mário Lúcio – Pela própria dinâmica da história, a reparação deve ser um processo individual que depois se torna coletivo. Não vale a pena uma nação indemnizar em bilhões de euros outra nação e os seus cidadãos continuarem racistas. Prefiro que o cidadão faça uma prática da valorização do Outro e venha ao encontro do Outro. A reparação, em todo o caso, só é válida se for humana. Perguntaram a Margaret Mead, uma antropóloga norte-americana, qual era o vestígio mais antigo de civilização encontrado até hoje. Ela respondeu: um fémur partido e curado. Um fémur, com 15.000 anos, mostrou que essa pessoa partiu o fémur e que depois se fez a reparação. Naquela época, alguém partir uma perna tornava-se presa fácil das feras ou morria de fome porque não conseguia deslocar-se com a comunidade. Isto significa que houve um momento em que alguém partiu uma perna e a comunidade decidiu parar até a pessoa ficar curada. Isso chama-se reparação. A reparação é própria da existência e sobrevivência da espécie. Eu quero que o semelhante repare em mim e me repare. Não só olhar, mas também complemente a minha existência. Essa reparação precisa, por um lado, que façamos o luto e, por outro, que abramos o coração ao Outro e que o Outro chegue com o seu perdão já feito. Ninguém perdoa a ninguém, se não a si mesmo. O grande trabalho é de nos perdoarmos. Começa por pedirmos perdão à entidade que acharmos conveniente, mas na verdade é um processo de aceitação do erro e chegar ao Outro, já não para pedir perdão, mas dizer: sou grato, pela oportunidade de voltar a conviver. Sou grato de teres existido, malgrado todos os maus tratos. Quando os brasileiros disseram que tinham de fazer um pedido de perdão a África, havia realmente uma grande comunidade negra a exigir esse pedido de perdão. Eu disse: pode ser legítimo, mas permitam-me só ter uma opinião diferente. Acho que deviam ser gratos e reconhecidos. Vieram para o Brasil mais de 4 milhões de negros e, no meio de todo o trabalho, de 16h por dia, no meio de todo o sofrimento, ainda há negros no Brasil de hoje? Parabéns. Isso é que é o grande trabalho, colossal, a resistência e o existir e o perdurar. Podia nem haver jia negros, nem dez exemplares, mas no meio disso, amaram e procriaram e fizeram um país. Tenhamos essa abordagem, essa aceitação de gratidão. Para tal, o Outro tem de estar de braços abertos para dizer: “De nada. Aconteceu. Tanto que nós, hoje, estamos limpos disso, vamos projetar uma identidade, amanhã, que seja limpo de tudo isso. Que nunca mais se repita”. Esta é a questão da reparação.

Apolo de Carvalho – Numa das suas entrevistas, diz que Portugal deveria assumir uma responsabilidade maior pelo Campo de Concentração do Tarrafal, porque de facto a maior parte dos prisioneiros eram portugueses. Ontem falávamos sobre o derrube das estátuas e da forma como os símbolos transitam, agradam e desagradam conforme os atores. Eu pergunto: o campo de concentração pode ser esse espaço de partilha de uma memória comum entre esses violentados e violadores? Ou, dito de outra forma, é preciso partilhar ancestralidades comuns para podermos construir comunidades juntos?

Mário Lúcio – Os campos de concentração são tentativas de redução do Outro, de calar o Outro. Por que é que eu acho que Portugal devia ter um papel maior? Porque, naquela época, Cabo Verde, era, oficialmente, português. Além disso, a prisão foi inaugurada por portugueses. A prisão física foi construída pelos próprios presos portugueses. Os portugueses estiveram lá mais tempo do que estiveram os africanos. Os portugueses estiveram lá de 1936 a 1956, os africanos estiveram 1961 a 1974. Morreram 32 portugueses, 10% da sua população carcerária; morreram dois angolanos e dois guineenses. Não morreu nenhum cabo-verdiano. Por essa razão, Portugal devia ter um papel maior em dizer: “esse lugar de memória representa uma grande parte da história de Portugal e dos portugueses. Queremos ter uma colaboração, em termos percentuais, muito maior que os outros países na construção e preservação desse património”. Porque tira o tabu que existia até há bem pouco tempo, e ainda persiste. Muitos jornalistas disseram ao entrevistar-me: “Mário, eu senti um alívio. Pensei que um africano, ao escrever sobre o Campo de Concentração, ia bater nos portugueses”. Não, não se esqueça que fomos todos vítimas, no mesmo lugar. É como se, hoje, fossemos enviados para uma prisão. Aqui não há poder, somos vítimas do sistema. Sofreram juntos, morreram juntos, no mesmo espaço e pela mesma causa. Esses presos tiveram um pensamento fundamental. Quando chegaram, morriam de tuberculose, de paludismo, de biliosa, mas, um dos personagens [no livro] diz: “atenção! Não são causas da morte, são modos de morrer!”. A causa, original é o pensamento, porque é o que nos trouxe cá. Por termos pensado, por pensarmos de forma diferente. Por isso, quem nos colocou aqui quer criar um magnético campo entre a causa da morte e a morte da causa. A morte da causa é perder a convicção, perder o desejo de lutar pela liberdade, deixar cair o ânimo. Ao compreenderem isso, desprezaram a morte e começaram a ver a vida, no mínimo e até ao ínfimo detalhe, para salvar a causa, e a causa não morreu, porque, na verdade, o fascismo acabou por sucumbir devido a um longo processo de luta, que começa com os prisioneiros portugueses, depois os angolanos e guineenses, mais tarde os cabo-verdianos, processo que, ulteriormente, vai-se redundar na guerra colonial. O fascismo teimava em não cair, e os movimentos nacionalistas somaram-se aos movimentos antifascistas e isso desembocou na independência das antigas colónias e na revolução de abril, em Portugal. É preciso lembrar que a Guiné-Bissau foi independente em 1973, declarou unilateralmente a independência e a Revolução dos Cravos acontece em abril de 1974. Isso possibilitou que, hoje, sejamos livres.

Apolo de Carvalho – O seu irmão Princezito canta: Um omi branku mata um omi pretu so pamodi omi pretu era pretu mé. Bruno Candé, ator, negro, português, foi morto por um homem branco, que esteve na guerra colonial, enquanto este proferia palavras racistas. Considera que o pensamento racista é ainda a causa da morte ou um modo de morrer? Ou, o facto de haver muitas mortes significa que a causa morreu e isso é um falhanço da própria causa?

Mário Lúcio – Qual é a causa do racismo? Qual é a causa do surgimento das crispações e dos extremos? A causa não está no surgimento, é como se tivéssemos febre e achássemos que a febre é uma doença. A febre é uma manifestação. A causa é a falência de um sistema democrático capaz e humano. Quando falha, surgem os outros a prometer o inverso. Qual é a causa da nossa luta? Quando falas da juventude de hoje, essa juventude tem uma causa, querem se libertar de séculos de representação que não nos representa. Finalmente, vem uma geração corajosa que diz: “não queremos saber. Queremos viver a vida! E não que um grupo de pessoas, por causa do formato, da formatação do sistema, que precisa de ser renovado, continue a determinar a vida do cidadão”. A nossa causa é comum, daí que ninguém deve ser excluído porque todos fazem falta. A luta antirracista não é contra o branco. É contra isto. Contra isto que quer colocar os brancos de um lado e os negros do outro.

Apolo de Carvalho – Cabral já dizia: a luta pela libertação não é contra o povo português, mas contra o colonialismo português.

Mário Lúcio – Ele sempre disse isto! Como se pode lutar contra um povo que inventou a palavra “mangustão”, “anzol”, “macaréu”? A humanidade é tão bela, na sua criação, que reduzir isso ao sujeito diferente é uma miséria humana de todo o tamanho. Há muito mais poesia e cosmos há volta. Nós temos de nos inserir nisso, com a noção da nossa pequenez. Achamo-nos os donos do universo e, hoje, cá estamos nós. Criamos a bomba de hidrogénio, mas não conseguimos matar o vírus. Nem com a unha! Mas temos bombas para eliminar o planeta não sei quantas vezes. Estamos a ver que a nossa arrogância não é a nossa potência, é a nossa fraqueza na sua máxima potência.

Bruno Costa – Sabemos que estudou em Cuba, gostaria de saber qual é a importância para a compreensão da travessia atlântica a partir do seu contacto com Cuba?

Mário Lúcio – A minha ida a Cuba foi casual. A história da minha vida é um filme que às vezes assisto e digo, estão a exagerar. Saí de casa com dez anos e fui morar num quartel e, ali, a referência que ouvia era Cuba. Os militares tinham vindo de Cuba, foram lá preparados para fazer um desembarque para lutar contra o exército português em Cabo Verde, isto não se deu, por várias razões. Depois da independência, os militares vieram e eu convivi com eles e ficou uma espécie de sonho, do país de Alice na minha memória. Quando fui estudar no liceu, na cidade da Praia, os três melhores alunos eram agraciados com uma bolsa de estudos, financiada a 100%, para onde quisessem. Uma das minhas colegas foi estudar medicina em França, ainda lá está. Outro foi para os EUA, ou para a Áustria. Eu disse Cuba. Não porque era uma escolha, mas porque era uma palavra que ressoava da minha infância. Disseram: “Cuba? Não há bolsas para Cuba! Ninguém vai para Cuba. Todo o mundo quer ir para a Europa e para os Estados Unidos”. Bem, eu queria ir para Cuba e tiveram de negociar com o governo cubano à última hora, e arranjaram uma bolsa para eu estudar direito. Eu queria estudar literatura, mas não havia bolsas para literatura. Queriam formar advogados, engenheiros, médicos, porque o país não tinha universidade. Tinha dois liceus, só. Lá fui e foi a grande sorte da minha vida. Pude viver o comunismo nos trópicos. Só quem viveu sabe explicar e entender. Há coisas tão maravilhosas, outras tão surrealistas, outras tão corruptas. Não parecia real, parecia um teatro. Tive a sorte de viver a educação gratuita, a saúde gratuita, mas também tive de viver a falência de um astronauta cubano ir ao espaço, e nesse dia não haver pão para tomar o pequeno-almoço. Aprendi muito. O facto de, sem nenhum esforço, haver equilíbrio no meu pensamento, é porque vivi por dentro de uma utopia e sei as coisas boas e as coisas más. Isso permite-me ver todo o sistema social, toda a democracia, mais as ditaduras, com as suas fragilidades e os seus esforços, também.

Bruno Costa – Gostaria que pensasse connosco a relação entre a crioulização e a Tropicália, no Brasil, a partir do conceito de antropofagia, de Oswald de Andrade. Da forma como vejo, a crioulização é quase uma forma de olhar o futuro, curar, enquanto que é a antropofagia é um recuperar de conhecimento que foi pisado e ignorado, e através desse tragar o que vem de fora, transformá-lo a partir de um ponto de vista que foi, precisamente, silenciado. Na minha leitura, a sua noção de crioulização seria uma fusão sem considerar a diferença e a antropofagia seria dar alguma relevância ao que foi ignorado para recuperar um lugar, pensar através de outra língua e espiritualidade.

Mário Lúcio – O que acontece com as teorias da descolonização ou da descolonização é que existem várias. A minha influência literária é latino-americana, mas ao mesmo tempo, a minha influência de pensamento, já não o é. Sou muito influenciado pelos pensadores africanos, também das Antilhas e europeus. Desde há 25 anos para cá, todo o meu estudo tem sido asiático, do hinduísmo ao taoismo, ao budismo, e de todas as filosofias que bebem nesses três sistemas. Sejam eles deístas ou não deístas. Incluindo Confúcio e Lao Tse. Há 25 anos que estou a aprender a pensar de forma não eurocêntrica, cartesiana. As causas e as consequências no pensamento europeu são diferentes das causas e consequências no pensamento asiático.

O que acontece com as teorias da antropofagia é que é uma teoria coletiva. A crioulização é uma teoria muito individual. Coletivamente pode-se dizer: sou português, brasileiro, descendente de italianos, e tudo isso é muito bom, porque é a nossa identidade de afirmação na relação com o Outro. Pode-se, ainda por cima, dizer: sou crioulo. Isso significa que, no meio de tantas misturas, em vez de deixar essas misturas fragmentárias em mim – ou ser híbrido, de uma coisa ou outra – juntei tudo à minha identidade, assumi e criei um espaço para o Outro. A própria luta contra o racismo, no fundo, é um processo individual. Nenhuma lei, nenhuma sociedade, por mais evoluída que seja, será sincera se o indivíduo não for sincero. Pode não exercer o racismo por causa das leis, das fiscalizações, mas o indivíduo – dentro de si – continua a segregar o outro. Portanto, é muito importante o processo individual. Tanto que as experiências das ditaduras têm-nos mostrado isso. As ditaduras começam no indivíduo. Esse indivíduo que discursa, inflama o grupo, inflama a sociedade, chega ao poder e continua a exercer as suas aberrações individuais. Há estudos científicos que demonstram as patologias comuns aos ditadores, quase parecem filhos do mesmo pai e da mesma mãe, porque é uma questão individual. Assim como também os grandes líderes iluminados surgem isoladamente. Siddhartha Gautama era príncipe, abandonou o palácio para se autoconhecer. Jesus de Nazaré, uma criança a viver numa sociedade dominada pelo judaísmo, em termos religiosos, e pelos romanos, em termos políticos disse: “eu não concordo com essa interpretação de Deus. Estão a utilizar Deus para enriquecer e dominar os pobres”. Ele, sozinho! Por isso é que a sua mãe foi chamada de Mãe de Deus. “Bendita Mãe”, como diz a Avé-Maria, “que pariu esse indivíduo”. O Profeta Maomé, que chegou anos depois de Jesus, disse: “É isto que fizeram da religião do Mestre?”. Não concordava, e criou o Islão, para projetar uma nova ideia de Deus, com muita poesia, conhecimento, regras sanitárias, para salvar.

Luciana Martinez – Em relação ao que Bruno pergunta, o Viveiros de Castro tem dito com alguma frequência que Oswald de Andrade foi o primeiro teórico decolonial da América Latina. Seria um teórico decolonial avant la lettre. Porém, o antropofagismo é muito ignorado dentro das teorias decoloniais latino-americanas, uma das hipóteses seria porque Oswald é radicalmente moderno e anticolonial e também muito contra uma identidade. O antropofagismo não é o resgaste de uma essência, mas sempre esse transformar terceiro. A junção do que vem de fora com o que vem de fora, deglutinado, devorado e transformado noutra coisa.

Mário Lúcio – A redução do Outro é um traço de incultura. Aí entra a definição do que é a cultura, e isso pode nos interessar. O que digo aqui é uma reflexão em fase de maturação, que coloco no mundo para depurar, partilhar com o Outro e amanhã conseguir pensar melhor do que hoje. Parto sempre do princípio de que não busco, não tenho e não quero a razão. Se tiver, partilho com o Outro. Não sou eu que penso, escrevo e componho. Faço um download cósmico, as coisas descem através de mim. Eu entrego para partilharmos, discutirmos, para melhorarmos. No fundo, a ideia é cada um colocar as suas questões em relação a várias coisas que o interpelam e tentar encontrar o seu equilíbrio, respostas e identidades. Por isso falo da identidade futura, e precisamos existir nessa identidade futura. A associação de vários indivíduos bons faz um ótimo coletivo, mas um ótimo coletivo de indivíduos maus é uma catástrofe. Prefiro um péssimo coletivo de indivíduos bons, porque a determinado momento vão se entender. No meu entendimento, nós somos, no mínimo, uma dualidade. Essa dualidade vem do facto de sermos matéria e, ao mesmo tempo, somos o desconhecido disso mesmo. Isto é, quando a física quântica descobriu o átomo, foi um achado. Descobrimos a mínima partícula que existe. Depois descobriram o neutrão, o eletrão, encontraram os neutrinos, depois o quark e, finalmente, fizeram a grande colisão no acelerador de partículas e acharam o “DNA de Deus”, o Bosão de Higgs. Só que, quando descobriram essa partícula, os cientistas disseram: dentro disso, deve haver milhões de partículas. A isso chamo a infinitude da infimitude. O infinito é ínfimo, porque não sabemos até onde vai. A ciência não tem resposta sobre o que aconteceu antes do Big Bang e qual é a mínima partícula que deu origem a tudo isso. Hoje achamos que é o Bosão de Higgs, não temos outra resposta. Só que, os hinduístas, há 2500 anos, disseram, no livro Mahabharata, numa cláusula simples e essencial: “E então, o espírito manifestou-se em matéria”. Quando lemos isso, sem ignorância de pensar se está certo ou errado, é de uma verdade tremenda. Um dos princípios da física, na natureza, é que nada se perde, nada se cria, tudo se transforma. Quando Stephen Hawkins apresentou os fundamentos dos buracos negros, defendeu que tudo o que entra no buraco negro desaparece. Ele ficou com pena porque isso é antifísico. Como é que no buraco negro tudo desparece, até a própria luz? Há várias teorias, pode ser uma passagem para um mundo paralelo, há outra teoria que diz que tudo se transforma em hologramas. Uma coisa é certa, aceitamos que há algo no universo que não funciona segundo as leis da física. Isto foi um momento histórico, que abre portas para outras descobertas. Levamos anos a estudar a matéria, mas ainda não começamos a estudar a pré-matéria. Qual é a ligação com a cultura? Na nossa manifestação material, nós temos 98% da matéria do cosmos, de matéria. Entretanto, temos alguma coisa que a pedra não tem. Somos capazes de colocar nas coisas alguma coisa que a coisa não tem. Por exemplo, pegamos em dois pedaços de pedra, um calhauzinho e um pedregulho. Eu vendo um pedaço de pedra por 1000€ e dou outro pedaço a alguém, que o atira ao chão porque não tem valor nenhum. Quem colocou o valor? Fomos nós, através da cultura. O que colocamos na pedra? Nada. Foi o imaterial. É o valor imaterial que colocamos que dá valor às coisas. Nós temos uma capacidade de criar. Isto é cultura. Nesse processo, quando é que o homem, enquanto ser vivo, como todos os outros seres, quando é que ultrapassou os outros? Quando teve a perceção do Amor. Para mim, a grande conquista da cultura é a perceção do Amor. Isto é, de um sapiens olhar para outro e sentir uma comichão na boca do estômago. Olhar para o seu bebé, que é ainda uma transição perene entre o símio e o homo, e sentir saudade. Mais do que sentir, contemplar, incorporar e tentar passar ao outro. No olhar, no toque, no arrepio. Com o Amor vem, claro, a sua antítese porque não há nada que persiste sem o seu contrário, e surge o ódio, evidentemente. Porém, é uma manifestação do Amor, como sabemos, não correspondido ou vingativo, seja como for. Essa conquista diferenciou-nos dos animais – como eram pensados. Atualmente sabemos que quase toda a totalidade de animais expressam amor. Isso já é uma convenção dos cientistas. Os golfinhos, os camelos que choram, a baleia que carrega a bebé morta durante semanas e não a quer deixar. Mesmo sabendo que a baleia morta não sente mais afeto, a baleia expressa o seu afeto. Como quando levamos flores aos mortos. O morto não está nem aí para as flores, mas para nós é importante. É para nós que levamos flores aos mortos. Cria em nós uma dignidade humana, um sentido de que não estamos a vulgarizar o que nos distingue do animal. Essa perceção também cria medo. Vários sentimentos vêm junto com o amor. Medo de perder, por exemplo. Surge então a ideia de Deus, a ideia do desconhecido e do incompreensível. Penso que é uma das grandes conquistas culturais, que vem dar origem à Religião, a sistematização disso. Começa-se a atribuir os raios a um deus, os relâmpagos a outro, a água, as estrelas, e conseguir criar, a partir do seu sentimento do amor, a relação com essas coisas, e deus pelo meio, ou acima de tudo. Deus, não só no sentido da providência, mas também no sentido do inexplicável. Pelo menos, da nossa relação com algo que não depende só da nossa explicação. Tanto é que o budismo é uma religião não deísta e a palavra "religião", em sânscrito, significa "disciplina"- relação com a coisa, foco e prática. Por isso, alguém pode dizer que ler é a sua religião. Ler com sistematização, com vontade, com foco, com prazer, com sentido de transformação que leva ao conhecimento. A grande terceira aquisição da humanidade foi o Conhecimento. Antes, eu sabia pegar numa pedra e atacar um mamute. Depois consegui talhar a pedra, colocar um cabo e guardar para quando fosse necessário. O Conhecimento salva, transforma-nos, e somos o que somos graças a isso, mas também graças a uma outra parte. A Transmissão do conhecimento. O Homem não só aprendeu, como criou formas de transmitir conhecimento, uma preocupação permanente para os académicos. Só saber, só, já é uma grande coisa. Saber transmitir o saber é garantir a perpetuidade. Por fim, o crepúsculo. Por fim, a ternura, o toque. A música. Isto é, a última, a insuperável aquisição da cultura. A Estética, que, em alguns momentos, chamamos de cultura. A moda, a culinária, a dança, a pintura, a literatura, chamamos cultura a tudo isso, mas é na verdade a apreciação da estética. O homem é seduzido pela beleza e a natureza, como se já viesse com esse desígnio, tem essa função, de alimentar o homem através do belo. François Cheng, um chinês da Academia Francesa de Letras, escreveu um livro belíssimo chamado “Cinq méditations sur la beauté”,[6] onde diz uma frase linda, com sonoridade linda: “La nature n’a pas l’obligation d’être belle, et pourtant elle l’est”.[7] Que relação existe entre o homem e a estética? Que bem me faz a estética, em todos os sentidos? Porque nos sentimos felizes ao contemplar um crepúsculo ou ao ver algo bonito? O nosso grande destaque, hoje, é conseguirmos expressar os nossos sentimentos de forma bonita, desde o amor, passando pela relação com Deus e a natureza, através da estética. Isso constitui a nossa parte diferenciada na relação com todas as outras coisas. Se tirarmos essa parte cultural, nós somos da mesma espécie que a folha de uma árvore. Temos os mesmos elementos que existem no cosmos, a diferença é que nós, temos noção da cultura, a folha da árvore pode não ter ou, se tem, desconhecemos. Pode ser que um dia possamos descobrir, também, que as árvores têm a sua linguagem.

Público 1 – Gostava de questionar se considera que será possível a transcendência do karma e da dualidade para alcançar o darma individual e, posteriormente, o coletivo, reconhecendo os nossos processos interiores de metamorfose. Como podemos nós, ao alcançar esta consciência interior, influenciar os que nos rodeiam? A terra, como organismo vivo, está a pedir-nos que a escutemos, que a olhemos, muito mais do que com todos os nossos sentidos, mas com o nosso coração e a nossa alma. Acha que conseguiremos no futuro, como coletivo terreno, atingir o darma e sair do círculo vicioso do karma?

Mário Lúcio – Já estamos. Na história da humanidade, com todos os vulcões, tsunamis, terramotos, guerra, inquisições…a população da humanidade nunca teve um decrescimento. Crescemos sempre, o que me leva a crer que somos muito melhores do que aparentamos. Também nesse processo, cada um busca a resposta. Conheci muita gente que nunca entrou numa igreja, nunca fez uma meditação e é muito melhor do que eu, e até me serve de referência. Porque não precisa, já deve ter passado por outras coisas. Eu acredito piamente que a humanidade tem muito, muito mais gente, absolutamente elevada, do que os poucos mesquinhos que às vezes causam grandes catástrofes. Karma é o processo de cada um, precisamente pelo que cada um carrega. Dizemos, por vezes, que é algo que se carrega de outras vidas, que não sabemos se existem, mas existem. A forma como a minha bisavó educou a minha avó passou para a minha mãe que a passou para mim. Isso é karma. A forma como tratamos os indivíduos, os gatos, os cães. Isso é karma. Mesmo que não tenha vivido, vivi, e se continuar, daqui a 200 anos, o meu tetraneto terá os defeitos que tive e que não consegui limpar. Karmas pessoais que o indivíduo demora muito tempo a perceber. O darma é a verdade nos dois sentidos, a verdade, sem adjetivos, viver na honestidade, na comunhão, olhar para o espelho e aplaudir, não ter vergonha. Nesse processo, por mais perfeito que seja, nós nunca seremos o outro, seremos sempre nós, por mais imperfeitos, somos nós. O que procuramos? Não é ser tão bom que nos tornemos um buda, mas conseguir debelar as coisas com que lidamos mal. Por exemplo, ira. Eu lido mal com a ira, não gosto de me sentir irado. Passo horas a tentar debelar essa ira, com o tempo, com prática, vai desaparecendo. Coisas que não nos ficam bem, que atrapalham, que atrapalham a convivência, devemos lutar para debelar. Nós temos uma humanidade boa porque temos preocupação com ela. Não poluir, não gastar água, não tratar mal o outro, mesmo que não o consigamos fazer, mas ter a noção que esse fazer é bom já é um grande avanço. Acredito na humanidade, em nós e nas próximas gerações.

Público 2 – Como foi o percurso para chegar à estética que usa no seu livro O diabo foi meu padeiro? Qual foi a causa dessa estética fragmentária e a decisão da divisão que corresponde aos tempos da prisão do Tarrafal? Qual foi o percurso até chegar a essas decisões estéticas e qual foi a causa deste livro? Sei que cresceu no Tarrafal, provavelmente envolto nestes testemunhos.

Mário Lúcio – A estética, sendo a quinta e mais nova aquisição da humanidade, ela por si só não faz nenhum escritor, não faz nenhuma pessoa melhor. É preciso que haja, nos outros caminhos longínquos, outros valores, até inconscientes. Um deles que acho essencial é a generosidade. Nasci e cresci no Tarrafal, a seis quilômetros do campo. Quando aos dez anos saí de casa, fui morar dentro do Campo de Concentração do Tarrafal, onde vivi durante cinco anos. Não sabia de nada. Cresci e, um dia, surge-me, por uma imagem, uma pessoa, que ia escrever um livro sobre o Campo de Concentração do Tarrafal. Não pensei que tinha vivido lá. Normalmente, quando vem a ideia do livro, espero que o livro desça. É o mesmo processo, na música, de repente, desce a letra. Quando tive o desejo, disse: “Está bom, já percebi que um dia hei de escrever esse livro”. Até que surgiu a primeira frase. Por isso, as primeiras frases nos meus livros são essenciais, porque é uma frase que não é minha. É o livro que desceu e depois tenho de decifrar como escrever. A primeira frase que me desceu foi: “Eu fui morrido em outubro de 1967 e conheci o diabo às duas da tarde”. Depois: “o inferno foi instituído pelo Decreto-Lei número 26.539, de abril de 1936”, a data de criação do campo. Com isso já tinha o caminho estético do livro. Já sabia que o Campo se ia chamar inferno, os diabos seriam os que lá trabalhavam e as pessoas eram morridas, não eram mortas. “Morriam-nos para não nos matarem”. A partir daí, tive de decidir o que contar e iniciei a investigação. Li muito, vi todos os documentários. E comecei a escrever. No início das primeiras páginas, surgem algumas questões importantes que definem a estética, mas que, engraçado, são questões éticas.

O que mais admiro na estética é que metade da palavra estética é composta por ética, e também aprendi com François Cheng que não há beleza sem ética. A ética é essencial para a estética. Vivi num quartel e não há lugar mais arrumado no mundo. É tudo ordenado, tudo pintado, a formatura, mas não é belo. Aquilo é um instrumento para matar. Ainda que nunca vá à guerra, mas é esse o sentido. É uma força de homens para, no caso de, matar outros homens. A beleza tem algo de ético. As minhas questões eram: como vou contar uma história que não é linear? Quero contar uma história sobre o Campo de Concentração, mas não quero contar a história dos portugueses, ponto; dos angolanos, ponto; dos guineenses, ponto; porque já seria fragmentado demais. Queria um livro em que todos se vissem representados, se sentissem irmãos na dor e triunfantes na causa. Ao procurar pistas para contar uma única história, descobri que entre os presos portugueses havia dois indivíduos chamados Pedro, mais quatro ou cinco tinha Pedro no nome, inclusive Gabriel Pedro e Edmundo Pedro. Entre os angolanos havia três Pedro, Pedro Benge, Pedro Pacavira e Pedro Chimbinda. Entre os guineenses havia Preto Mancanha, e entre os cabo-verdianos, o Pedro Rolando dos Reis Martins. O engraçado é que o Pedro dos Santos Soares, o primeiro português que é meu narrador, escreveu um livro sobre as suas memórias. O Pedro Rolando dos Reis Martins, o cabo-verdiano, também escreveu um livro, chamado Testemunhos de um combatente. Disse: “tenho aqui um material incrível”. Os outros Pedro, utilizei-os para contarem os 80 testemunhos que existem. De repente, no livro, o Pedro Santos Soares é transferido para Lisboa, uns quatro ou seis anos depois, e eu perco o meu narrador. Eu não queria ser o auto-narrador, o livro é contado na primeira pessoa, no tempo presente, por quem viveu. Foi um desafio, ter o cuidado de não dizer “saí pela janela, e entrei pela porta hoje de manhã”, mas antes “estou a sair pela janela, entro pela porta”. Quando o Pedro Santos Soares chega ao Campo de Concentração, ele diz “aqui vamos nós, Edmundo Pedro, Gabriel Pedro, o Francisco Nascimento, o Rato e eu. Eu, Pedro Santos Soares”, e ele conta toda a história. De repente, vem para Lisboa, e diz “Acabei de chegar a Lisboa. Eu, fulano e fulano”. No parágrafo seguinte, “Estamos no Campo de Concentração, eu, fulano, fulano, fulano e eu, Pedro”. É o Pedro José da Conceição. E assim acontece com os angolanos, os guineenses e isso liga as histórias. Quando chegam os angolanos, o Pedro Benge fala dos fantasmas dos portugueses que lá estão. A única divisão que faço é que quando termino a história dos portugueses e entra outro Pedro a contar, mudo a linguagem. Passo do português alfacinha, para o falazar, o português dos anos 1950 de Luanda. Igualmente, os guineenses vêm falar o português guineense cheio de crioulo. Quando chegam os cabo-verdianos, que são muito formais, herdaram isso dos portugueses quinhentistas, vêm com esse português carregado de “tendo em conta” e “considerando que”. Isso demonstra a diversidade da língua, com as invenções das palavras. Essa foi uma decisão. Quero que eles falem como era, e permitindo ao leitor da língua portuguesa compreender tudo isso. Dependia da minha capacidade de escrever.

Público 2 – É aí que a ética se junta com a estética? Dar a história não a um narrador, mas colocar quem viveu a contar a sua história. Essa decisão do narrador é mais ética do que estética. Imagino que a escrita deste livro levantou várias questões éticas, contar o sofrimento dos outros é de uma grande responsabilidade. Gostava de saber quais foram as questões éticas que surgiram e que podem o ter parado.

Mário Lúcio – No início, essa questão de querer mostrar que éramos os mesmos lutadores e resistentes, independentemente de uns seres portugueses e outros africanos. A segunda questão ética foi contar desde o ponto de vista de quem sofre e descobrir que quem sofre tem uma perspetiva e uma fé. Isso ensina-nos que o horror está sempre em quem o aplica e não em quem o recebe. Quem te ofender, ele é que está ofensivo. Quem recebe tem a opção de ter compaixão, tem a opção de transformar aquilo em amor e poesia. Não pode conviver com a mesma arma e continuar a destilar horror contra um especialista no horror. Isso foi uma questão ética, de como contar o sofrimento, mas com poesia, fé, solidariedade, reparação, humor. Outra questão ética foi mostrar que, entre todas as fraquezas humanas, a maior é o abandono de si próprio. De certo modo, quando podia justificar os que estavam a sofrer, responsabilizei-os. Não pelo que fizeram, mas pelo que tinham pela frente, pelo que tinham por fazer, lendo os seus testemunhos e compreendendo que tinham essa tarefa. Tive várias outras questões éticas, mais de índole pessoal. Tive de fazer uma investigação exaustiva sobre a vida verdadeira de cada um desses prisioneiros. Tive de usar os próprios nomes, as datas de nascimento, as datas em que foram presos, as profissões, como eram. Se fumavam, se não fumavam, se bebiam, se eram alcoólatras, se não eram, para respeitar a memória da família. Por fim, a última questão ética era dar um epitáfio a quem não teve epitáfio. E o livro tem uma página dedicada a cada preso morto no Tarrafal. E a página é só dele. A dizer: hoje morreu Francisco Rato, nosso serralheiro mecânico. Ele não teve direito a epitáfio e o livro guarda isso em memória. No final resultou que eu apenas fiz um download cósmico. Na verdade, quem escreveu o livro foram esses personagens que estão ali, que contaram do jeito deles, sem juízo nem preconceito, apenas a dizer o que viveram. Cabe-nos a nós interpretar.

Público 3 – Da minha parte quero lhe dar os parabéns, por nos estar a dar uma grande prova que é um ser humano com uma alma grande, com uma grande sensibilidade e uma grande capacidade de introspeção. Acho que pessoas como o Mário fazem falta atualmente, pois as nossas sociedades estão tão mortas, estão tão apagadas. Fez-me lembrar o Nelson Mandela, porque não escreveu tragédias, escreveu amor. Acho que ao ler os seus livros interiorizo sentimentos nobres, que me fazem crescer e olhar para realidades diferentes e me tornam melhor, fazendo com que quem está ao meu lado também se torne melhor. Nesse aspeto acho que o Mário acaba sendo um profeta, porque qualquer pessoa que tenha esta capacidade é o profeta do bem, o profeta do amor.

Mário Lúcio – O meu segredo sabe qual é? Sou apaixonado até ao limite da deselegância. Nunca, nos seis anos que tive na universidade, nunca usei um papel e um lápis. Olhava com um apreço para os professores, que quando precisava de lembrar, lembrava-me dos detalhes, do momento da pronúncia das palavras. Do gesto, dos sons da rua. Quando escrevo não uso notas, nem estruturo livros, não uso anotações. Não é uma decisão, nunca pensei nisso. Só estava a escrever com a mesma paixão e natureza, sei de antemão que posso escrever tranquilo porque não vai haver pormenores que firam sensibilidades. Não sou um profeta, nem pretendo ser. Não sou nenhum guru, gosto de ser comum. Gosto de ser sentido. É tudo. Há muito amor na humanidade, no sentido amplo e até ao amor mais direto. Sou um grande apaixonado. Digo-lhe que na escrita, na música, na relação com as pessoas, a minha gratidão vem da perceção estética do exemplar único. Da unicidade. Às vezes fico sentado num parque, ou no aeroporto, sentado. Fico a ver as pessoas a passar. Podem ser muitas, mas cada uma é um exemplar único e fico fascinado com esse exemplar. É a minha paixão visceral, que me inspira, ao conversar com as pessoas.

Público 4 – Gostaria de saber se se lembra do seu processo de criação?

Mário Lúcio – Não, e pior ainda: não me lembro das letras das minhas canções. Ainda bem que as canções são minhas porque eu invento na hora. Já misturei “repolho” com “diamante”. De tanto praticar consigo cantar sem lembrar, mas se for lembrar, eu esqueço! Quanto aos livros, eu gosto desse processo de não saber o que vou escrever na página seguinte. Não sei o que vem depois, já fui surpreendido, neste livro O diabo foi meu padeiro, escrevi uma coisa e comecei a vomitar. Estava a descrever a água que os presos iam beber, e eu não sabia que ia escrever e não consegui escrever mais até ao dia seguinte. Outro momento, é quando descrevo a morte do Bento Gonçalves no livro, escrevi a chorar, porque foi o meu companheiro de cela durante vários meses e, de repente, foi-se embora. Tenho momentos de grande satisfação, quando as pessoas leem o que escrevi. Sou proibido de ir ao teatro ver a representação das peças que escrevi, porque não deixo ninguém escutar. Dou gargalhadas do princípio ao fim. Tem esse download cósmico, sim. Nós escrevemos sim e passamos para suportes para partilhar com os outros.

Apolo de Carvalho – Sobre essa questão do download cósmico, já que estamos num espaço académico, onde o nome daquele que produz o conhecimento é muito importante, e essas outras existências, várias, que compõem o nosso conhecer muitas vezes desaparecem, como pensa a autoria do seu trabalho, dentro da academia e como artista?

Mário Lúcio – É, tem sempre de se dizer o nome do autor do download (risos). Isso é fundamental. Resumidamente, o autor do download tem de pagar a internet cósmica (risos). Ele vive, nem que seja do éter, mas tem de viver das coisas materiais. É importante. Nestes sete meses que estive sem fazer espetáculos, consegui viver sereno graças aos direitos autorais.

Apolo de Carvalho – Só mais uma questão, estamos na Cena Lusófona, existe a Casa da Lusofonia e pegando novamente na questão da crioulização, e sabendo todo o discurso que existe em torno da lusofonia como o terceiro espaço de existência e identidades, como pensa a questão da lusofonia com a crioulidade?

Mário Lúcio – Todas as metáforas, todas as línguas, são convenções. Convencionou-se chamar “lusofonia” ao conjunto de países onde se fala português. Tomar esse conceito como definição de identidade desses países é errado. Dentro dessa convenção considero-me pertencente a um país lusófono, mas etimologicamente, culturalmente, não sou lusófono. Recentemente, no Corrente D’Escritas na Póvoa de Varzim, propus que o correto seria dizer “Países Africanos com Língua Portuguesa” e não “de Língua Portuguesa”. A língua portuguesa é desses países. Nós apoderamo-nos e tornamo-la num património que usamos, e bem. Somos gratos a esse processo de apoderamento que nos deu a língua, mas Guiné Bissau, Cabo Verde, Angola, Moçambique, países com mais de 25 línguas, exceto Cabo Verde, (línguas!, não estou a falar de dialetos, mas de línguas, bem estruturadas) são países multilíngues, mas também com língua portuguesa, e isso é importante. Agora, como disse, chamar um espaço ou uma associação de lusofonia é bonito, os conceitos não têm mal quando são bem usados. A sua relação com a crioulização tem exatamente a ver com isso, pode se criar um espaço em que os cidadãos originários dos países com língua portuguesa se sintam numa comunidade chamada Lusofonia. Seria de começar a corrigir, e acho que a academia nisso tem muito peso. Dizer “Países com Língua Portuguesa”, e não “de Língua Portuguesa”, que, todos juntos, criam um espaço a que convencionamos chamar de Lusofonia. Todos os espaços que incluem e não excluem são grandes cenas e altares de comunhão e da melhoria do nosso exercício na relação com o outro. Estamos cheios de espaços que confinam e que separam, pelo que todos os espaços que unam são bem-vindos.

Apolo de Carvalho – Para terminar, o que é essencial em tempos de pandemia?

Mário Lúcio – Amor. O amor consegue calibrar a sua antítese, o amor consegue apreciar toda a dimensão do outro indivíduo, o amor consegue domar o tempo, por mais veloz que seja a luz. Por isso é que se diz que o amor é cego, porque consegue domar a luz e o tempo. Não é só o amor platónico, mas o exercício prático do amor. O ato de manusear qualquer coisa precisa de amor, no gesto, no toque, de qualquer objeto. Porque é a nossa matriz primeira, de quando deixamos de ser apenas vida orgânica para passarmos a ser também vida social. Nesses tempos, mais do que nunca, mais do que sempre, amor em todos os seus sentidos, e cada um descobrirá a dimensão da palavra. Amor na aceitação. Não posso sair, não posso viajar, aceitar isso com amor e fazer as outras coisas possíveis de serem feitas nesse tempo. Amor na partilha. Saber que comer e extasiarmo-nos pode ter o seu lado desequilibrado, se o outro estiver com fome. Grande parte da violência vem da ignorância da carência do outro. Se nos limitamos a viver e a desfrutar do que temos, esquecemos da carência do outro. Aí o outro invade-nos, invade o nosso território para ter o que não tem. Aquele que estiver mais atento já tem uma forma de prever a violência e o ataque. A palavra, o silêncio, a escuta, a sabedoria, a sapiência são amor que o Outro emana. O Outro tem sempre uma experiência única, se tivermos a sorte de partilhar, é uma grande sabedoria. Não só em aspetos oníricos, mas também em exercícios práticos. O exercício do amor, em todo o tempo será igual, não vai sentir se estamos em pandemia ou não. Colocar o amor até no amor. Colocar o amor até no desamor.

 

[1] O presente texto corresponde à transcrição da conversa com Mário Lúcio, que ocorreu no passado dia 14 de outubro 2020, na Cena Lusófona, na sequência da sessão do dia anterior com o título “A redução do Outro como reflexo da incultura”. Esta sessão foi apresentada por Apolo de Carvalho, que preparou também as perguntas iniciais. A conversa foi posteriormente transcrita e editada pela comissão editorial. O debate foi aberto ao público num momento posterior. Por motivos de respeito da privacidade dos envolvidos, as perguntas feitas pelo público que não pertence ao programa doutoral em Pós-Colonialismos e Cidadania Global foram identificadas como “Público”.

[2] Mário Lúcio Matias de Sousa Mendes é cantor, compositor, escritor, pensador, nasceu em 21 de outubro de 1964, no Tarrafal, Ilha de Santiago, Cabo Verde. É uma das figuras mais reconhecidas da cena cultural cabo-verdiana, tanto local como internacionalmente. É o escritor mais premiado do país internacionalmente, o poeta que marcou a viragem na nova poesia cabo-verdiana com o livro Nascimento de Um Mundo, um dos conceituados pensadores da sua geração, autor do Manifesto a Crioulização, a obra mais atual sobre o fenómeno da crioulização no mundo.

[3]Apolo de Carvalho é estudante do Doutoramento em Pós-Colonialismos e Cidadania Global, na Universidade de Coimbra, com um projeto de investigação centrado nos panafricanismos contemporâneos, financiado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia.

[4] É o mestiço, mais alguma coisa.

[5] A crioulidade.

[6] “Cinco meditações sobre a beleza”.

[7] “A natureza não tem obrigação de ser bela, mas ela, entretanto, é bela”.