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“A redução do Outro como reflexo da incultura”[1]:
conversa entre Mário Lúcio Sousa[2] e Apolo de
Carvalho[3]
“La reduccíon del Otro como reflejo de la incultura”:
charla entre Mário Lúcio Sousa y Apolo de Carvalho
“The reduction of the Other as a reflection of
inculture”: talk between Mário Lúcio Sousa and Apolo de
Carvalho
Créditos: Nuno Cirenza, Rádio Universidade de
Coimbra (RUC).
Apolo de Carvalho – Saudações a todas as
presenças que de alguma forma aqui se manifestam. Un
botardi muito especial ao convidado que aqui nos reúne,
Mário Lúcio. Obrigado à professora Catarina pelo convite
para fazer a apresentação da pessoa, do autor, deste mais
velho de aura anciã, esta referência imensa que é Mário
Lúcio.
Se o ato de apresentar é meramente formal, porque de
certa forma já conhecemos e já ouvimos o convidado, a
responsabilidade não deixa de ser grande. Não só porque me
sinto uma espécie de liliputiano perto de um gigante, ou
porque normalmente cabe aos velhos, os mais sábios, os
Griots, os Djidiu e Djelis – coisa que não sou iniciado –
falar sobre grandes homens e dos seus feitos, mas também,
porque é extremamente difícil apresentar quem é e encarna
muitas coisas e existe sendo. Quem de certa forma circula,
ou peregrina na sua própria existência, quem incorpora e
desincorpora. Espero, com respeito, conseguir fazer
justiça a esta grande biblioteca, a esta imensa orquestra
humana que me cabe, então, falar um pouco sobre.
Ontem, enquanto ouvia o lindíssimo e já nostálgico
concerto de Mário Lúcio, lembrei-me do apelo que
Amadou-Mahtar M'Bow fez num discurso na UNESCO, em 1987,
onde dizia: “Dirijo-me com grande emoção e esperança aos
artistas, aos escritores, aos poetas, aos cantores para os
convidar, em todo o lado, a testemunhar que os povos
também precisam de existir na imaginação, no imaginário.”
Há dias via um vídeo produzido por uma grande artista
negra portuguesa, Raquel Lima, onde, juntamente com a mãe,
respondia à pergunta: o que é essencial em tempo de
pandemia? Ontem, ao ouvir Mário Lúcio, esta imensidão
poética que, usando as palavras de Césaire, nos convida a
sermos porosos a todos os sopros do mundo, fiquei a pensar
que, se calhar, o essencial é a arte e a cultura. A arte
de viver, de imaginar, de se reinventar, de desenrascar. A
arte de se curar, a arte da palavra, a arte do encontro, a
arte do com-versar com versos. Artes estas,
vistas como supérfluas, como desnecessárias e improdutivas
em tempos como estes, onde prima uma política do ventre,
que esquece que até o comer, o alimentar-se, é também um
ato e um fazer poético.
Ilha di Santiagu ten Bibinha Kabral, nha Nasia Gomi nhu
Ariki, Kodé di Dona, nhu Anu Nobu, Nha Balila, ma tanbi,
ten Mário Lúcio, ki ta bisti só di branku sima Obatalá, ki
nasi la na Tarafal, un Téra di munti djentis grandi, ki
prendi skrebi na txon, ki, desdi mininu ta kontaba ti mil,
ki dadu gasadju la na Kortel di Txon Bon, ma ki fasi
morada la na Kasa Bedju. Un omi ki na kada konbersu
kantadu, skredu o pintadu, ta da un konsedju. Ilha di
Santiagu ten Mário Lúcio ki ba Kuba ki torna ben, pa podi
fasi Simentéra, pa Azágua podi dá. Es Mário Lúcio ki na
tudu petu ki e toka e ta festa bedju i ta po-nu fika tudu
kontenti.
Cabo Verde, Ilha de Santiago, Tarrafal, terra de pedras e
poetas, tem poetas que são ministros, deputados e
presidentes. Tem caminhos construídos, com pedras
lapidadas por libertos e cativos, mas também tem o Mar.
Este que salgou o sangue das suas gentes, como canta
Ovídio Martins, e, talvez por isso, a sua poesia e os seus
ritmos, a sua musicalidade, a sua memória, são também
MA-rítmicas, oceânicas, atlânticas. Porque afinal, como
diz Mário Lúcio, os cabo-verdianos são filhos do mar. O
mar é mais do que uma metáfora, ela é uma realidade que
está presente na poética vivida de Mário Lúcio.
Hoje, dia 14 de outubro de 2020, faltam precisamente 7
dias para comemorarmos o dia em que Nha Zita deu à luz
Mário Lúcio, um ser novo que, como que predestinado a
partejar uma escrita nova, veria a publicar Nascimento
de um mundo (1991), uma inédita ode às dez ilhas.
Mário Lúcio nasceu em 1964, no Tarrafal, na altura, ainda
uma colónia penal. É comum ouvirmos dizer que Cabo Verde é
um país que tem apenas dois momentos históricos. O período
colonial e o “pós-colonial”. Na música “Goré”, do álbum Badyo,
Mário Lúcio pergunta “underis kes mosinhus ki bai?”. Na
música são citados vários nomes de povos africanos, tais
como Mandinga, Mandjaku, Fula, Ifé Wolof, Yoruba, entre
outros. Povos esses que que estariam na génese do próprio
povo cabo-verdiano. Em entrevistas, Mário Lúcio disse uma
vez que estuda a cultura para poder perceber a sua própria
pessoa, e que o papel da cultura é lutar contra a
ignorância. No seu texto sobre a cultura, apresentado à
UNESCO, em 1972, Amílcar Cabral dizia que a luta pela
libertação era, em si, um ato de cultura e que as
manifestações culturais são poderosos instrumentos de
informação e formação. Para Cabral, a luta contra a
ignorância e pela descolonização das mentes são, em si,
processos culturais que levam à libertação. Uma libertação
mais ampla, que não se resumiria a ter um hino e uma
bandeira e que, por isso, não se podia encarar como a
independência formal das colónias. Cabral dizia ainda que,
se pudesse, fazia uma luta sem armas, só com livros.
Cabral, enquanto ideia, enquanto pensamento, é hoje muito
útil para pensarmos os desafios dos nossos dias. Essas
realidades cada vez mais emaranhadas umas nas outras. Kabral
ka mori é o título de um poema de Manuel Braga
Tavares, lido por Mário Lúcio, ainda criança, como que
dizendo: a causa não morreu. Sinto na arte de Mário Lúcio,
nos temas que trabalha, uma contribuição imensa para uma
luta contra a ignorância, pela descolonização das mentes e
pelo resgate de uma noção mais profunda e mais ampla de
humanidade e pela vitalidade das causas pela vida.
Essa contribuição é feita de várias formas, de
manifestações e linguagens. Há, em Mário Lúcio, uma
poética, se quisermos, uma voz artística, multiforme e de
certa forma, griótica, também. Não tivesse ele sido criado
numa terra cheia de contadores e contadoras de histórias.
Essa voz poética pode ser ouvida, porque é música, pode
ser lida porque ela é escrita, pode ver vista porque ela é
pintura e pode ser, também, contemplada e sentida, porque
a sua voz é uma voz que muitas vezes se cala, que murmura
sons sem palavras. É uma voz que se desmaterializa, que
nos convida à meditação, a uma conversa entre silêncios.
Há no labor poético de Mário Lúcio, uma forte dimensão do
sensível. Dimensões estas que convocam várias temáticas
ligadas aos sentidos da inexistência do homem e da mulher
de Cabo Verde, e do nosso lugar no mundo. A questão do
local e do universal, do individual e do coletivo, a
memória e história, o trânsito, o lugar, o rasto ou o
vestígio, como diria Glissant, estão amplamente presentes.
Estamos, então, face a um artista eclético, plural. Mário
Lúcio compõe músicas, dirige orquestras e toca vários
instrumentos. De ressaltar que foi fundador dos Simentera,
um grupo musical de grande referência em Cabo Verde e, no
meio de tudo isto, teve ainda tempo para o labor político,
no sentido da gestão e governação do Estado. Foi deputado
e Ministro da Cultura de Cabo Verde, na anterior
legislatura, e esteve à frente de grandes projetos, como a
Atlantic Music Expo – que reúne anualmente vários artistas
do mundo, profissionais do sector artístico,
investigadores, em torno da música e de outras artes. Fez
de Cabo Verde uma plataforma giratória da arte. Esteve
também à frente de planos de conservação do campo de
concentração de Tarrafal, um dos projetos que lhe é ainda
muito caro.
É interessante que, mesmo sendo ministro, a poesia sempre
esteve presente no seu fazer. Em 2011, numa intervenção no
parlamento cabo-verdiano cantou a morna Doce guerra,
do compositor Antero Simas, para apelar a um pacto
cultural de longo prazo, solicitando, também, a
oficialização da língua cabo-verdiana.
Com Mário Lúcio, a poética, a poesia, além de serem em si
produção de conhecimento, são também metodologias de
transmissão desses conhecimentos. O seu livro O diabo
foi o meu padeiro (2019) é exemplo claro disso.
Embora sendo um romance, tem um registo documental, que
nos informa sobre factos históricos que dificilmente nos
penetrariam como outros livros de história, com uma
linguagem mais académica, poderiam fazer. Vulgariza o
conhecimento de uma forma mais digerível.
Os seus livros circulam entre poesia, teatro e romance,
pelo que o autor recusa qualquer tipo de catalogação. Nascimento
de um mundo novo (1990), é um dos seus livros de
poemas, com poemas das dez ilhas de Cabo Verde e é
considerado uma obra prima que faz uma viragem na poética
cabo-verdiana. Escreveu Novíssimo Testamento (2009),
Biografia da língua (2015) e, um dos
mais recentes trabalhos, de certa forma relacionado ao seu
primeiro livro, Nascimento de um mundo novo, é
o Manifesto da crioulização, que está em fase de
publicação. Já em algumas entrevistas tem falado sobre a
temática da crioulização, que diz respeito à identidade
das pessoas cabo-verdianas, ou das pessoas das ilhas. De
referir o belíssimo trabalho, o álbum Kreol, uma
coletânea de músicas dedicadas ao Oceano Atlântico – esse
património da humanidade, como lhe chamou. Nesse álbum,
conectado ao documentário realizado por Frédérique Menant,
Mário Lúcio refaz as rotas da escravatura. Percorre os
portos, as ilhas, os países, os caminhos, como um ato de
recuperar esses vestígios, junto de artistas de várias
latitudes. Encontrou pessoas como Édouard Glissant, autor
do Manifesto Antilhês e uma referência
incontornável nos estudos crioulísticos.
Como disse, apresentar o autor é uma tarefa difícil. Ele
é muitas coisas, faz muitas coisas, e ainda bem. Num mundo
onde estamos tão acostumados a ter caixinhas e
catalogações, Mário Lúcio é, nesses espaços, alguém que
nos convida a respirar. No documentário Kreol (2010),
Glissant define crioulização como “a força de reconstruir,
a partir dos traços, sem ser prisioneiro dos traços”.
Segundo Glissant, há o eco dos traços, mas não somos
prisioneiros disso. As músicas não são músicas que nos
fixam, mas músicas que nos projetam para outro espaço.
Acho interessante a forma como Mário Lúcio nos convida a
viajar entre os tempos, passado, presente e futuro, sem
ser prisioneiro de um tempo em específico. Existir sendo.
Pegando nessa questão do Glissant, traria, também, a
Negritude de Césaire. Césaire diz que “a negritude não é
uma metafísica, não é uma conceção pretensiosa do
universo. É um modo de viver a história na história. A
história de uma comunidade cuja experiência aparece, a bem
dizer, singular com as suas deportações de populações, as
suas transferências de homens de um continente para o
outro. Memórias de crenças longínquas, restos de culturas
assassinadas”. Lanço essa pergunta: Mário Lúcio, como é
que a Negritude conversa com a crioulização e se existe
antagonismo?
Mário Lúcio – Boa tarde, meninos,
meninas, a terceira possibilidade de ser menino e menina
num só, e a quarta possibilidade de não ser nenhuma dessas
coisas, e que tenhamos de descobrir o que poderia vir, e
que seja bem-vindo. Agradeço a vossa presença, estou aqui
mais para ouvir, pelo menos as perguntas. Para partilhar.
Apolo fez uma pergunta, inicial, e uma série de perguntas.
Começou pela "negritude", perguntando que relação tem ela
com a crioulização. A negritude foi um movimento dos anos
1960, liderado por Léopold Sédar Senghor, poeta que veio a
ser presidente do Senegal e que influenciou toda uma
geração de pensadores, entre eles, Amílcar Cabral, o herói
de Cabo Verde e da Guiné Bissau. Esse movimento era
necessário, porquê? Porque estávamos num processo, longo,
de opressão, que começou no século XV, com o tráfico dos
escravos negros. Esse processo segue, depois, para a
colonização, o espartilhamento de África na Conferência de
Berlim, desemboca na Primeira e Segunda Guerra Mundial,
enfim, uma catadupa de eventos que impediu que houvesse um
momento de reflexão sobre esse mesmo processo. Surge
então, na sequela das guerras, dos traumas e das
aprendizagens, os movimentos independentistas, as
independências das antigas colónias, o momento de chamar
atenção para um fenómeno que estava silenciado há 500
anos: a redução dos negros. Reuniram-se um pouco por toda
a parte, líderes africanos – como Léopold Sédar Senghor,
que fez uma antologia da poesia negra, africana e malgaxe
(língua de Madagáscar) – influenciam toda uma geração de
pensadores, e chegam à Martinica e a Guadalupe, onde havia
crioulos com dilemas sérios de identidade. A negritude
fazia apologia do negro, porque era necessário naquela
época. “Nós existimos, somos iguais, temos esses méritos,
descubra civilizações como o Império do Mali, saiba o que
é o Tombuctu, saiba que temos uma História grande, como
todas as histórias regionais ou continentais. Mas,
chamando a atenção para o seguinte: essa tipologia da
espécie, por ter a pele negra ou pertencer a um
continente, tem sido vítima de uma grande desinformação
intencional”. Em primeiro, foi criada a teoria das raças,
criado pelo alemão Norton. Foi-lhe pedido, como cientista,
para justificar a escravatura. Para justificar isso, teve
de catalogar os humanos em raças, em grupos. Os
caucasianos, em primeiro lugar; depois os indo-europeus,
os indo-asiáticos. Quando chegou a África, deparou-se com
um enorme problema. Queria meter toda a África num saco,
mas não dava. Tinha o Egipto, cuja história não se podia
apagar. Tinha a Tunísia, que tinha sido parte do Império
Romano, tinha dado dois imperadores a Roma, e tinha toda a
civilização do Magrebe. Então, teve a ideia de chamar
“raça etíope” a esses ali e, do rio Níger para baixo,
chamar-lhes “os negros”. Esses eram, praticamente, não
humanos, na teoria de Norton. Assim, justificou que os
negros fossem tratados como mercadorias e animais. A
ciência já provou que a raça não existe. Nem genética, nem
culturalmente. Geneticamente, somos homo sapiens
e, culturalmente, somos a humanidade. É pela cultura que
podemos encontrar diferenças que nos enriquecem pela
multiplicidade. Chega um momento em que a negritude não
pode ser invocada como razão de apologia. Ainda continua,
porque certas sociedades precisam de chamar a atenção para
o fenómeno. Dentro da democracia da existência, eu acho
melhor defender a minha existência na relação com o Outro,
porque respeito as diferenças do Outro. Quem fala da
negritude, tem de ouvir quando alguém se levantar e falar
da branquitude. Nós, hoje, estamos numa crispação social,
mas isto é cíclico. Há 100 anos, havia pessoas de pele
mais clara que diziam “Nós, os brancos…” e as pessoas
ouviam caladas. Aquele que era negro nem se atrevia a
dizer: “olha, eu também estou aqui”. Hoje, ouve-se: “eu
sou negro. Eu sou raça negra. 100% negro. Vivam os
negros!”. Ótimo! Mas se um branco se levantar e disser “eu
sou branco. Viva o branco”, ele é racista. A minha postura
é de evitar esses radicalismos. E a luta da crioulização,
a luta contra o racismo, a luta de qualquer causa, não
supõe o aspeto visual, mas o conteúdo que não é visível.
Nós, que estamos a lutar contra o racismo, podemos ter
exemplos surpreendentes, de passar na rua, ver um negro e
dizer: “Meu amigo, vem cá! Estamos a lutar contra o
racismo, vem fazer parte” e ele dizer, “não, não. Eu sou
neonazista, convicto”. Porém, de repente, vem uma pessoa
branca e diz-te: “Apolo, eu vi-te na televisão a falar do
racismo. Eu também sou contra, também quero fazer parte da
tua luta”. E aí? A cor caiu por terra. Nesse processo, é
preciso distinguirmos o sujeito-objeto sobre quem recaiu a
discriminação da causa contra a objetificação do sujeito.
A causa é lutar contra o preconceito e contra o racismo.
Nessa causa, venham todas as cores, que comunguem esses
princípios comuns. A cor aqui serve para aumentar a paleta
da diversidade, mas que venha com a cabeça incolor. Venha
com a alma clara e cristalina. Venha com a fé luminosa, o
coração generoso. Daí que, quando falo da crioulização,
não estou a falar de ancestralidade. A ancestralidade
serve-nos de referência, mas qualquer passado que
aprisiona tem um condicionante. É melhor um futuro que
liberta. Nós podemos projetar a nossa identidade no
futuro. A luta, hoje, impõe que, inspirados nos nossos
ancestrais, todos – vikings, bantu, ioruba, mandiga – as
2000 etnias que existem em África, mais os gauleses, os
normandos, os bretões…portugueses, ibéricos, os gregos, os
troianos, os macedónios, que venham todos. Cada um com a
sua ancestralidade para que, em vez de nos separarmos,
como lá atrás, projetarmos uma identidade futura, onde
possamos conviver. Com diferenças, mas num espaço comum.
Um exemplo que dou é a nossa própria experiência da
crioulização. O que é ser um crioulo? Édouard Glissant
dizia, o crioulo “c’est le métis plus quelque chose”.[4] Nós
evoluímos da negritude para a mestiçagem. Já foi um grande
avanço. Por isso é que Bernabé e Chamoiseau, inspirados em
Aimé Césaire – que defendia a negritude dentro de uma ilha
crioula – defendiam a crioulização da própria ilha. Eles
falavam da Crioulidade. La creolité.[5] Sempre que
se fala de uma característica, “crioulidade”, “negritude”,
“portugalidade”, “cabo-verdianidade”, estás a catalogar e
a criar uma caixa. Quem não tem esses valores ficam fora
dessa caixa. Pode se relacionar com outros tantos valores,
mas tem de admitir que quem fala de cabo-verdianidade,
aceite sem complexos que o outro fale da sua portugalidade
ou brasilidade. Esta é a democracia, racial, inclusive.
Permitir que o outro seja. Se não estamos a permitir que
sejamos, não podemos usar a mesma arma. Temos de convencer
o outro que ele não está a permitir que eu exista,
convencê-lo de que tenho o direito de existir, das minhas
razões da igualdade da existência, e permitir que ele
também exista e se mostre. Se é para eu existir para
eliminar o outro, prefiro não existir. É esta a minha
convicção búdica. Seria bom que projetássemos uma nova
postura, que se chama identidade terceira e identidade
futura. Sermos capazes de começar a construir uma
identidade nova, despida de identidades manchadas que já
existem, mas evidente, na relação com todas as
identidades, e com a nossa própria identidade. O processo
passa de negritude para creolité e da
creolité para crioulização. Glissant, dentro da
mestiçagem, defende o nome “crioulização” e não
“crioulidade”, pois este último é fixo e crioulização é um
processo dialético. Estamos num processo de crioulização,
todos nós. O crioulo não precisa necessariamente de ser
mestiço, no sentido curto do termo. Mestiços seremos
todos, ou já fomos. A mestiçagem é uma contingência
genética, resultado de duas pessoas de tipologias
diferentes, segundo a geografia da sua vivência. Por isso
essa diferença, essa diferença de paletas visíveis. Isso é
mestiçagem. Crioulização, a postura, é a resposta aos
dilemas. Toda identidade, nas minhas reflexões, vem da
resposta que damos aos dilemas. Seja a identidade
genética, ou racial, individual, sexual, política ou
outra. Nós temos dilemas e respondemos aos nossos dilemas
com uma afirmação e isso é a nossa identidade. Também, na
cultura, ser crioulo é essa resposta. É uma identidade
nova, que começa a surgir no século XV, que se projetou e
que hoje existe por toda a parte. Crioulo é um espaço
cultural e identitário, onde todos os que quiserem caber
têm lugar de inclusão para partilharmos a existência, a
beleza de existir. Isso não tira que, dentro do espaço
crioulo, continuemos as lutas para o reconhecimento dos
valores de cada cultura. Dentro do espaço crioulo há quem
despreze a cultura negra como convenção. Não existe,
cientificamente, uma cultura negra, mas utilizamos o
termo. Há também quem despreze o outro, dizendo que esta
“precisa de apanhar sol”, ou acha a menina “muito
deslavada”, ou “precisa de desfrisar o cabelo”, ou
“enrolar o cabelo”, ou cortar…enfim! Coisas tão…palpáveis
e minúsculas, detalhes, dentro da grande natureza da
existência.
Apolo de Carvalho – Também é
interessante trazer aqui a questão de Cabo Verde, pensando
em vários movimentos como Black Lives Matter,
o Rhodes Must Fall. Tem surgido vários
movimentos com um certo pendor panafricano – na minha
opinião – que se afirmam, não só contra as estátuas, mas
também contra a morte de pessoas, pessoas negras e que
pedem, inclusive, uma outra história no espaço público.
Pergunto: como é que a crioulização pensa questões como a
reparação e que tipo de reparação é essa? Achille Mbembe
dizia que a reparação tem de ser reivindicada porque nada
é reparável, mas nada sendo reparável nós temos de exigir
essa reparação. Como é que pensa essas questões?
Mário Lúcio – Pela própria dinâmica da
história, a reparação deve ser um processo individual que
depois se torna coletivo. Não vale a pena uma nação
indemnizar em bilhões de euros outra nação e os seus
cidadãos continuarem racistas. Prefiro que o cidadão faça
uma prática da valorização do Outro e venha ao encontro do
Outro. A reparação, em todo o caso, só é válida se for
humana. Perguntaram a Margaret Mead, uma antropóloga
norte-americana, qual era o vestígio mais antigo de
civilização encontrado até hoje. Ela respondeu: um fémur
partido e curado. Um fémur, com 15.000 anos, mostrou que
essa pessoa partiu o fémur e que depois se fez a
reparação. Naquela época, alguém partir uma perna
tornava-se presa fácil das feras ou morria de fome porque
não conseguia deslocar-se com a comunidade. Isto significa
que houve um momento em que alguém partiu uma perna e a
comunidade decidiu parar até a pessoa ficar curada. Isso
chama-se reparação. A reparação é própria da existência e
sobrevivência da espécie. Eu quero que o semelhante repare
em mim e me repare. Não só olhar, mas também complemente a
minha existência. Essa reparação precisa, por um lado, que
façamos o luto e, por outro, que abramos o coração ao
Outro e que o Outro chegue com o seu perdão já feito.
Ninguém perdoa a ninguém, se não a si mesmo. O grande
trabalho é de nos perdoarmos. Começa por pedirmos perdão à
entidade que acharmos conveniente, mas na verdade é um
processo de aceitação do erro e chegar ao Outro, já não
para pedir perdão, mas dizer: sou grato, pela oportunidade
de voltar a conviver. Sou grato de teres existido,
malgrado todos os maus tratos. Quando os brasileiros
disseram que tinham de fazer um pedido de perdão a África,
havia realmente uma grande comunidade negra a exigir esse
pedido de perdão. Eu disse: pode ser legítimo, mas
permitam-me só ter uma opinião diferente. Acho que deviam
ser gratos e reconhecidos. Vieram para o Brasil mais de 4
milhões de negros e, no meio de todo o trabalho, de 16h
por dia, no meio de todo o sofrimento, ainda há negros no
Brasil de hoje? Parabéns. Isso é que é o grande trabalho,
colossal, a resistência e o existir e o perdurar. Podia
nem haver jia negros, nem dez exemplares, mas no meio
disso, amaram e procriaram e fizeram um país. Tenhamos
essa abordagem, essa aceitação de gratidão. Para tal, o
Outro tem de estar de braços abertos para dizer: “De nada.
Aconteceu. Tanto que nós, hoje, estamos limpos disso,
vamos projetar uma identidade, amanhã, que seja limpo de
tudo isso. Que nunca mais se repita”. Esta é a questão da
reparação.
Apolo de Carvalho – Numa das suas
entrevistas, diz que Portugal deveria assumir uma
responsabilidade maior pelo Campo de Concentração do
Tarrafal, porque de facto a maior parte dos prisioneiros
eram portugueses. Ontem falávamos sobre o derrube das
estátuas e da forma como os símbolos transitam, agradam e
desagradam conforme os atores. Eu pergunto: o campo de
concentração pode ser esse espaço de partilha de uma
memória comum entre esses violentados e violadores? Ou,
dito de outra forma, é preciso partilhar ancestralidades
comuns para podermos construir comunidades juntos?
Mário Lúcio – Os campos de concentração
são tentativas de redução do Outro, de calar o Outro. Por
que é que eu acho que Portugal devia ter um papel maior?
Porque, naquela época, Cabo Verde, era, oficialmente,
português. Além disso, a prisão foi inaugurada por
portugueses. A prisão física foi construída pelos próprios
presos portugueses. Os portugueses estiveram lá mais tempo
do que estiveram os africanos. Os portugueses estiveram lá
de 1936 a 1956, os africanos estiveram 1961 a 1974.
Morreram 32 portugueses, 10% da sua população carcerária;
morreram dois angolanos e dois guineenses. Não morreu
nenhum cabo-verdiano. Por essa razão, Portugal devia ter
um papel maior em dizer: “esse lugar de memória representa
uma grande parte da história de Portugal e dos
portugueses. Queremos ter uma colaboração, em termos
percentuais, muito maior que os outros países na
construção e preservação desse património”. Porque tira o
tabu que existia até há bem pouco tempo, e ainda persiste.
Muitos jornalistas disseram ao entrevistar-me: “Mário, eu
senti um alívio. Pensei que um africano, ao escrever sobre
o Campo de Concentração, ia bater nos portugueses”. Não,
não se esqueça que fomos todos vítimas, no mesmo lugar. É
como se, hoje, fossemos enviados para uma prisão. Aqui não
há poder, somos vítimas do sistema. Sofreram juntos,
morreram juntos, no mesmo espaço e pela mesma causa. Esses
presos tiveram um pensamento fundamental. Quando chegaram,
morriam de tuberculose, de paludismo, de biliosa, mas, um
dos personagens [no livro] diz: “atenção! Não são causas
da morte, são modos de morrer!”. A causa, original é o
pensamento, porque é o que nos trouxe cá. Por termos
pensado, por pensarmos de forma diferente. Por isso, quem
nos colocou aqui quer criar um magnético campo entre a
causa da morte e a morte da causa. A morte da causa é
perder a convicção, perder o desejo de lutar pela
liberdade, deixar cair o ânimo. Ao compreenderem isso,
desprezaram a morte e começaram a ver a vida, no mínimo e
até ao ínfimo detalhe, para salvar a causa, e a causa não
morreu, porque, na verdade, o fascismo acabou por sucumbir
devido a um longo processo de luta, que começa com os
prisioneiros portugueses, depois os angolanos e
guineenses, mais tarde os cabo-verdianos, processo que,
ulteriormente, vai-se redundar na guerra colonial. O
fascismo teimava em não cair, e os movimentos
nacionalistas somaram-se aos movimentos antifascistas e
isso desembocou na independência das antigas colónias e na
revolução de abril, em Portugal. É preciso lembrar que a
Guiné-Bissau foi independente em 1973, declarou
unilateralmente a independência e a Revolução dos Cravos
acontece em abril de 1974. Isso possibilitou que, hoje,
sejamos livres.
Apolo de Carvalho – O seu irmão
Princezito canta: Um omi branku mata um omi pretu so
pamodi omi pretu era pretu mé. Bruno Candé, ator,
negro, português, foi morto por um homem branco, que
esteve na guerra colonial, enquanto este proferia palavras
racistas. Considera que o pensamento racista é ainda a
causa da morte ou um modo de morrer? Ou, o facto de haver
muitas mortes significa que a causa morreu e isso é um
falhanço da própria causa?
Mário Lúcio – Qual é a causa do racismo?
Qual é a causa do surgimento das crispações e dos
extremos? A causa não está no surgimento, é como se
tivéssemos febre e achássemos que a febre é uma doença. A
febre é uma manifestação. A causa é a falência de um
sistema democrático capaz e humano. Quando falha, surgem
os outros a prometer o inverso. Qual é a causa da nossa
luta? Quando falas da juventude de hoje, essa juventude
tem uma causa, querem se libertar de séculos de
representação que não nos representa. Finalmente, vem uma
geração corajosa que diz: “não queremos saber. Queremos
viver a vida! E não que um grupo de pessoas, por causa do
formato, da formatação do sistema, que precisa de ser
renovado, continue a determinar a vida do cidadão”. A
nossa causa é comum, daí que ninguém deve ser excluído
porque todos fazem falta. A luta antirracista não é contra
o branco. É contra isto. Contra isto que quer colocar os
brancos de um lado e os negros do outro.
Apolo de Carvalho – Cabral já dizia: a
luta pela libertação não é contra o povo português, mas
contra o colonialismo português.
Mário Lúcio – Ele sempre disse isto!
Como se pode lutar contra um povo que inventou a palavra
“mangustão”, “anzol”, “macaréu”? A humanidade é tão bela,
na sua criação, que reduzir isso ao sujeito diferente é
uma miséria humana de todo o tamanho. Há muito mais poesia
e cosmos há volta. Nós temos de nos inserir nisso, com a
noção da nossa pequenez. Achamo-nos os donos do universo
e, hoje, cá estamos nós. Criamos a bomba de hidrogénio,
mas não conseguimos matar o vírus. Nem com a unha! Mas
temos bombas para eliminar o planeta não sei quantas
vezes. Estamos a ver que a nossa arrogância não é a nossa
potência, é a nossa fraqueza na sua máxima potência.
Bruno Costa – Sabemos que estudou em
Cuba, gostaria de saber qual é a importância para a
compreensão da travessia atlântica a partir do seu
contacto com Cuba?
Mário Lúcio – A minha ida a Cuba foi
casual. A história da minha vida é um filme que às vezes
assisto e digo, estão a exagerar. Saí de casa com dez anos
e fui morar num quartel e, ali, a referência que ouvia era
Cuba. Os militares tinham vindo de Cuba, foram lá
preparados para fazer um desembarque para lutar contra o
exército português em Cabo Verde, isto não se deu, por
várias razões. Depois da independência, os militares
vieram e eu convivi com eles e ficou uma espécie de sonho,
do país de Alice na minha memória. Quando fui estudar no
liceu, na cidade da Praia, os três melhores alunos eram
agraciados com uma bolsa de estudos, financiada a 100%,
para onde quisessem. Uma das minhas colegas foi estudar
medicina em França, ainda lá está. Outro foi para os EUA,
ou para a Áustria. Eu disse Cuba. Não porque era uma
escolha, mas porque era uma palavra que ressoava da minha
infância. Disseram: “Cuba? Não há bolsas para Cuba!
Ninguém vai para Cuba. Todo o mundo quer ir para a Europa
e para os Estados Unidos”. Bem, eu queria ir para Cuba e
tiveram de negociar com o governo cubano à última hora, e
arranjaram uma bolsa para eu estudar direito. Eu queria
estudar literatura, mas não havia bolsas para literatura.
Queriam formar advogados, engenheiros, médicos, porque o
país não tinha universidade. Tinha dois liceus, só. Lá fui
e foi a grande sorte da minha vida. Pude viver o comunismo
nos trópicos. Só quem viveu sabe explicar e entender. Há
coisas tão maravilhosas, outras tão surrealistas, outras
tão corruptas. Não parecia real, parecia um teatro. Tive a
sorte de viver a educação gratuita, a saúde gratuita, mas
também tive de viver a falência de um astronauta cubano ir
ao espaço, e nesse dia não haver pão para tomar o
pequeno-almoço. Aprendi muito. O facto de, sem nenhum
esforço, haver equilíbrio no meu pensamento, é porque vivi
por dentro de uma utopia e sei as coisas boas e as coisas
más. Isso permite-me ver todo o sistema social, toda a
democracia, mais as ditaduras, com as suas fragilidades e
os seus esforços, também.
Bruno Costa – Gostaria que pensasse
connosco a relação entre a crioulização e a Tropicália, no
Brasil, a partir do conceito de antropofagia, de Oswald de
Andrade. Da forma como vejo, a crioulização é quase uma
forma de olhar o futuro, curar, enquanto que é a
antropofagia é um recuperar de conhecimento que foi pisado
e ignorado, e através desse tragar o que vem de fora,
transformá-lo a partir de um ponto de vista que foi,
precisamente, silenciado. Na minha leitura, a sua noção de
crioulização seria uma fusão sem considerar a diferença e
a antropofagia seria dar alguma relevância ao que foi
ignorado para recuperar um lugar, pensar através de outra
língua e espiritualidade.
Mário Lúcio – O que acontece com as
teorias da descolonização ou da descolonização é que
existem várias. A minha influência literária é
latino-americana, mas ao mesmo tempo, a minha influência
de pensamento, já não o é. Sou muito influenciado pelos
pensadores africanos, também das Antilhas e europeus.
Desde há 25 anos para cá, todo o meu estudo tem sido
asiático, do hinduísmo ao taoismo, ao budismo, e de todas
as filosofias que bebem nesses três sistemas. Sejam eles
deístas ou não deístas. Incluindo Confúcio e Lao Tse. Há
25 anos que estou a aprender a pensar de forma não
eurocêntrica, cartesiana. As causas e as consequências no
pensamento europeu são diferentes das causas e
consequências no pensamento asiático.
O que acontece com as teorias da antropofagia é que é uma
teoria coletiva. A crioulização é uma teoria muito
individual. Coletivamente pode-se dizer: sou português,
brasileiro, descendente de italianos, e tudo isso é muito
bom, porque é a nossa identidade de afirmação na relação
com o Outro. Pode-se, ainda por cima, dizer: sou crioulo.
Isso significa que, no meio de tantas misturas, em vez de
deixar essas misturas fragmentárias em mim – ou ser
híbrido, de uma coisa ou outra – juntei tudo à minha
identidade, assumi e criei um espaço para o Outro. A
própria luta contra o racismo, no fundo, é um processo
individual. Nenhuma lei, nenhuma sociedade, por mais
evoluída que seja, será sincera se o indivíduo não for
sincero. Pode não exercer o racismo por causa das leis,
das fiscalizações, mas o indivíduo – dentro de si –
continua a segregar o outro. Portanto, é muito importante
o processo individual. Tanto que as experiências das
ditaduras têm-nos mostrado isso. As ditaduras começam no
indivíduo. Esse indivíduo que discursa, inflama o grupo,
inflama a sociedade, chega ao poder e continua a exercer
as suas aberrações individuais. Há estudos científicos que
demonstram as patologias comuns aos ditadores, quase
parecem filhos do mesmo pai e da mesma mãe, porque é uma
questão individual. Assim como também os grandes líderes
iluminados surgem isoladamente. Siddhartha Gautama era
príncipe, abandonou o palácio para se autoconhecer. Jesus
de Nazaré, uma criança a viver numa sociedade dominada
pelo judaísmo, em termos religiosos, e pelos romanos, em
termos políticos disse: “eu não concordo com essa
interpretação de Deus. Estão a utilizar Deus para
enriquecer e dominar os pobres”. Ele, sozinho! Por isso é
que a sua mãe foi chamada de Mãe de Deus. “Bendita Mãe”,
como diz a Avé-Maria, “que pariu esse indivíduo”. O
Profeta Maomé, que chegou anos depois de Jesus, disse: “É
isto que fizeram da religião do Mestre?”. Não concordava,
e criou o Islão, para projetar uma nova ideia de Deus, com
muita poesia, conhecimento, regras sanitárias, para
salvar.
Luciana Martinez – Em relação ao que
Bruno pergunta, o Viveiros de Castro tem dito com alguma
frequência que Oswald de Andrade foi o primeiro teórico
decolonial da América Latina. Seria um teórico decolonial
avant la lettre. Porém, o antropofagismo é muito
ignorado dentro das teorias decoloniais latino-americanas,
uma das hipóteses seria porque Oswald é radicalmente
moderno e anticolonial e também muito contra uma
identidade. O antropofagismo não é o resgaste de uma
essência, mas sempre esse transformar terceiro. A junção
do que vem de fora com o que vem de fora, deglutinado,
devorado e transformado noutra coisa.
Mário Lúcio – A redução do Outro é um
traço de incultura. Aí entra a definição do que é a
cultura, e isso pode nos interessar. O que digo aqui é uma
reflexão em fase de maturação, que coloco no mundo para
depurar, partilhar com o Outro e amanhã conseguir pensar
melhor do que hoje. Parto sempre do princípio de que não
busco, não tenho e não quero a razão. Se tiver, partilho
com o Outro. Não sou eu que penso, escrevo e componho.
Faço um download cósmico, as coisas descem
através de mim. Eu entrego para partilharmos, discutirmos,
para melhorarmos. No fundo, a ideia é cada um colocar as
suas questões em relação a várias coisas que o interpelam
e tentar encontrar o seu equilíbrio, respostas e
identidades. Por isso falo da identidade futura, e
precisamos existir nessa identidade futura. A associação
de vários indivíduos bons faz um ótimo coletivo, mas um
ótimo coletivo de indivíduos maus é uma catástrofe.
Prefiro um péssimo coletivo de indivíduos bons, porque a
determinado momento vão se entender. No meu entendimento,
nós somos, no mínimo, uma dualidade. Essa dualidade vem do
facto de sermos matéria e, ao mesmo tempo, somos o
desconhecido disso mesmo. Isto é, quando a física quântica
descobriu o átomo, foi um achado. Descobrimos a mínima
partícula que existe. Depois descobriram o neutrão, o
eletrão, encontraram os neutrinos, depois o quark
e, finalmente, fizeram a grande colisão no acelerador de
partículas e acharam o “DNA de Deus”, o Bosão de Higgs. Só
que, quando descobriram essa partícula, os cientistas
disseram: dentro disso, deve haver milhões de partículas.
A isso chamo a infinitude da infimitude. O infinito é
ínfimo, porque não sabemos até onde vai. A ciência não tem
resposta sobre o que aconteceu antes do Big Bang e qual é
a mínima partícula que deu origem a tudo isso. Hoje
achamos que é o Bosão de Higgs, não temos outra resposta.
Só que, os hinduístas, há 2500 anos, disseram, no livro
Mahabharata, numa cláusula simples e essencial: “E então,
o espírito manifestou-se em matéria”. Quando lemos isso,
sem ignorância de pensar se está certo ou errado, é de uma
verdade tremenda. Um dos princípios da física, na
natureza, é que nada se perde, nada se cria, tudo se
transforma. Quando Stephen Hawkins apresentou os
fundamentos dos buracos negros, defendeu que tudo o que
entra no buraco negro desaparece. Ele ficou com pena
porque isso é antifísico. Como é que no buraco negro tudo
desparece, até a própria luz? Há várias teorias, pode ser
uma passagem para um mundo paralelo, há outra teoria que
diz que tudo se transforma em hologramas. Uma coisa é
certa, aceitamos que há algo no universo que não funciona
segundo as leis da física. Isto foi um momento histórico,
que abre portas para outras descobertas. Levamos anos a
estudar a matéria, mas ainda não começamos a estudar a
pré-matéria. Qual é a ligação com a cultura? Na nossa
manifestação material, nós temos 98% da matéria do cosmos,
de matéria. Entretanto, temos alguma coisa que a pedra não
tem. Somos capazes de colocar nas coisas alguma coisa que
a coisa não tem. Por exemplo, pegamos em dois pedaços de
pedra, um calhauzinho e um pedregulho. Eu vendo um pedaço
de pedra por 1000€ e dou outro pedaço a alguém, que o
atira ao chão porque não tem valor nenhum. Quem colocou o
valor? Fomos nós, através da cultura. O que colocamos na
pedra? Nada. Foi o imaterial. É o valor imaterial que
colocamos que dá valor às coisas. Nós temos uma capacidade
de criar. Isto é cultura. Nesse processo, quando é que o
homem, enquanto ser vivo, como todos os outros seres,
quando é que ultrapassou os outros? Quando teve a perceção
do Amor. Para mim, a grande conquista da cultura é a
perceção do Amor. Isto é, de um sapiens
olhar para outro e sentir uma comichão na boca do
estômago. Olhar para o seu bebé, que é ainda uma transição
perene entre o símio e o homo, e sentir saudade.
Mais do que sentir, contemplar, incorporar e tentar passar
ao outro. No olhar, no toque, no arrepio. Com o Amor vem,
claro, a sua antítese porque não há nada que persiste sem
o seu contrário, e surge o ódio, evidentemente. Porém, é
uma manifestação do Amor, como sabemos, não correspondido
ou vingativo, seja como for. Essa conquista
diferenciou-nos dos animais – como eram pensados.
Atualmente sabemos que quase toda a totalidade de animais
expressam amor. Isso já é uma convenção dos cientistas. Os
golfinhos, os camelos que choram, a baleia que carrega a
bebé morta durante semanas e não a quer deixar. Mesmo
sabendo que a baleia morta não sente mais afeto, a baleia
expressa o seu afeto. Como quando levamos flores aos
mortos. O morto não está nem aí para as flores, mas para
nós é importante. É para nós que levamos flores aos
mortos. Cria em nós uma dignidade humana, um sentido de
que não estamos a vulgarizar o que nos distingue do
animal. Essa perceção também cria medo. Vários sentimentos
vêm junto com o amor. Medo de perder, por exemplo. Surge
então a ideia de Deus, a ideia do desconhecido e do
incompreensível. Penso que é uma das grandes conquistas
culturais, que vem dar origem à Religião, a
sistematização disso. Começa-se a atribuir os raios a um
deus, os relâmpagos a outro, a água, as estrelas, e
conseguir criar, a partir do seu sentimento do amor, a
relação com essas coisas, e deus pelo meio, ou acima de
tudo. Deus, não só no sentido da providência, mas também
no sentido do inexplicável. Pelo menos, da nossa relação
com algo que não depende só da nossa explicação. Tanto é
que o budismo é uma religião não deísta e a palavra
"religião", em sânscrito, significa "disciplina"- relação
com a coisa, foco e prática. Por isso, alguém pode dizer
que ler é a sua religião. Ler com sistematização, com
vontade, com foco, com prazer, com sentido de
transformação que leva ao conhecimento. A grande terceira
aquisição da humanidade foi o Conhecimento.
Antes, eu sabia pegar numa pedra e atacar um mamute.
Depois consegui talhar a pedra, colocar um cabo e guardar
para quando fosse necessário. O Conhecimento salva,
transforma-nos, e somos o que somos graças a isso, mas
também graças a uma outra parte. A Transmissão do
conhecimento. O Homem não só aprendeu, como
criou formas de transmitir conhecimento, uma preocupação
permanente para os académicos. Só saber, só, já é uma
grande coisa. Saber transmitir o saber é garantir a
perpetuidade. Por fim, o crepúsculo. Por fim, a ternura, o
toque. A música. Isto é, a última, a insuperável aquisição
da cultura. A Estética, que, em alguns
momentos, chamamos de cultura. A moda, a culinária, a
dança, a pintura, a literatura, chamamos cultura a tudo
isso, mas é na verdade a apreciação da estética. O homem é
seduzido pela beleza e a natureza, como se já viesse com
esse desígnio, tem essa função, de alimentar o homem
através do belo. François Cheng, um chinês da Academia
Francesa de Letras, escreveu um livro belíssimo chamado
“Cinq méditations sur la beauté”,[6]
onde diz uma frase linda, com sonoridade linda: “La nature
n’a pas l’obligation d’être belle, et pourtant elle
l’est”.[7]
Que relação existe entre o homem e a estética? Que bem me
faz a estética, em todos os sentidos? Porque nos sentimos
felizes ao contemplar um crepúsculo ou ao ver algo bonito?
O nosso grande destaque, hoje, é conseguirmos expressar os
nossos sentimentos de forma bonita, desde o amor, passando
pela relação com Deus e a natureza, através da estética.
Isso constitui a nossa parte diferenciada na relação com
todas as outras coisas. Se tirarmos essa parte cultural,
nós somos da mesma espécie que a folha de uma árvore.
Temos os mesmos elementos que existem no cosmos, a
diferença é que nós, temos noção da cultura, a folha da
árvore pode não ter ou, se tem, desconhecemos. Pode ser
que um dia possamos descobrir, também, que as árvores têm
a sua linguagem.
Público 1 – Gostava de questionar se
considera que será possível a transcendência do karma
e da dualidade para alcançar o darma
individual e, posteriormente, o coletivo, reconhecendo os
nossos processos interiores de metamorfose. Como podemos
nós, ao alcançar esta consciência interior, influenciar os
que nos rodeiam? A terra, como organismo vivo, está a
pedir-nos que a escutemos, que a olhemos, muito mais do
que com todos os nossos sentidos, mas com o nosso coração
e a nossa alma. Acha que conseguiremos no futuro, como
coletivo terreno, atingir o darma e sair do
círculo vicioso do karma?
Mário Lúcio – Já estamos. Na história
da humanidade, com todos os vulcões, tsunamis, terramotos,
guerra, inquisições…a população da humanidade nunca teve
um decrescimento. Crescemos sempre, o que me leva a crer
que somos muito melhores do que aparentamos. Também nesse
processo, cada um busca a resposta. Conheci muita gente
que nunca entrou numa igreja, nunca fez uma meditação e é
muito melhor do que eu, e até me serve de referência.
Porque não precisa, já deve ter passado por outras coisas.
Eu acredito piamente que a humanidade tem muito, muito
mais gente, absolutamente elevada, do que os poucos
mesquinhos que às vezes causam grandes catástrofes. Karma
é o processo de cada um, precisamente pelo que cada um
carrega. Dizemos, por vezes, que é algo que se carrega de
outras vidas, que não sabemos se existem, mas existem. A
forma como a minha bisavó educou a minha avó passou para a
minha mãe que a passou para mim. Isso é karma. A
forma como tratamos os indivíduos, os gatos, os cães. Isso
é karma. Mesmo que não tenha vivido, vivi, e se
continuar, daqui a 200 anos, o meu tetraneto terá os
defeitos que tive e que não consegui limpar. Karmas pessoais
que o indivíduo demora muito tempo a perceber. O darma
é a verdade nos dois sentidos, a verdade, sem adjetivos,
viver na honestidade, na comunhão, olhar para o espelho e
aplaudir, não ter vergonha. Nesse processo, por mais
perfeito que seja, nós nunca seremos o outro, seremos
sempre nós, por mais imperfeitos, somos nós. O que
procuramos? Não é ser tão bom que nos tornemos um buda,
mas conseguir debelar as coisas com que lidamos mal. Por
exemplo, ira. Eu lido mal com a ira, não gosto de me
sentir irado. Passo horas a tentar debelar essa ira, com o
tempo, com prática, vai desaparecendo. Coisas que não nos
ficam bem, que atrapalham, que atrapalham a convivência,
devemos lutar para debelar. Nós temos uma humanidade boa
porque temos preocupação com ela. Não poluir, não gastar
água, não tratar mal o outro, mesmo que não o consigamos
fazer, mas ter a noção que esse fazer é bom já é um grande
avanço. Acredito na humanidade, em nós e nas próximas
gerações.
Público 2 – Como foi o percurso para
chegar à estética que usa no seu livro O diabo
foi meu padeiro? Qual foi a causa dessa estética
fragmentária e a decisão da divisão que corresponde aos
tempos da prisão do Tarrafal? Qual foi o percurso até
chegar a essas decisões estéticas e qual foi a causa deste
livro? Sei que cresceu no Tarrafal, provavelmente envolto
nestes testemunhos.
Mário Lúcio – A estética, sendo a quinta
e mais nova aquisição da humanidade, ela por si só não faz
nenhum escritor, não faz nenhuma pessoa melhor. É preciso
que haja, nos outros caminhos longínquos, outros valores,
até inconscientes. Um deles que acho essencial é a
generosidade. Nasci e cresci no Tarrafal, a seis
quilômetros do campo. Quando aos dez anos saí de casa, fui
morar dentro do Campo de Concentração do Tarrafal, onde
vivi durante cinco anos. Não sabia de nada. Cresci e, um
dia, surge-me, por uma imagem, uma pessoa, que ia escrever
um livro sobre o Campo de Concentração do Tarrafal. Não
pensei que tinha vivido lá. Normalmente, quando vem a
ideia do livro, espero que o livro desça. É o mesmo
processo, na música, de repente, desce a letra. Quando
tive o desejo, disse: “Está bom, já percebi que um dia hei
de escrever esse livro”. Até que surgiu a primeira frase.
Por isso, as primeiras frases nos meus livros são
essenciais, porque é uma frase que não é minha. É o livro
que desceu e depois tenho de decifrar como escrever. A
primeira frase que me desceu foi: “Eu fui morrido em
outubro de 1967 e conheci o diabo às duas da tarde”.
Depois: “o inferno foi instituído pelo Decreto-Lei número
26.539, de abril de 1936”, a data de criação do campo. Com
isso já tinha o caminho estético do livro. Já sabia que o
Campo se ia chamar inferno, os diabos seriam os que lá
trabalhavam e as pessoas eram morridas, não eram mortas.
“Morriam-nos para não nos matarem”. A partir daí, tive de
decidir o que contar e iniciei a investigação. Li muito,
vi todos os documentários. E comecei a escrever. No início
das primeiras páginas, surgem algumas questões importantes
que definem a estética, mas que, engraçado, são questões
éticas.
O que mais admiro na estética é que metade da palavra
estética é composta por ética, e também aprendi com
François Cheng que não há beleza sem ética. A ética é
essencial para a estética. Vivi num quartel e não há lugar
mais arrumado no mundo. É tudo ordenado, tudo pintado, a
formatura, mas não é belo. Aquilo é um instrumento para
matar. Ainda que nunca vá à guerra, mas é esse o sentido.
É uma força de homens para, no caso de, matar outros
homens. A beleza tem algo de ético. As minhas questões
eram: como vou contar uma história que não é linear? Quero
contar uma história sobre o Campo de Concentração, mas não
quero contar a história dos portugueses, ponto; dos
angolanos, ponto; dos guineenses, ponto; porque já seria
fragmentado demais. Queria um livro em que todos se vissem
representados, se sentissem irmãos na dor e triunfantes na
causa. Ao procurar pistas para contar uma única história,
descobri que entre os presos portugueses havia dois
indivíduos chamados Pedro, mais quatro ou cinco tinha
Pedro no nome, inclusive Gabriel Pedro e Edmundo Pedro.
Entre os angolanos havia três Pedro, Pedro Benge, Pedro
Pacavira e Pedro Chimbinda. Entre os guineenses havia
Preto Mancanha, e entre os cabo-verdianos, o Pedro Rolando
dos Reis Martins. O engraçado é que o Pedro dos Santos
Soares, o primeiro português que é meu narrador, escreveu
um livro sobre as suas memórias. O Pedro Rolando dos Reis
Martins, o cabo-verdiano, também escreveu um livro,
chamado Testemunhos de um combatente. Disse:
“tenho aqui um material incrível”. Os outros Pedro,
utilizei-os para contarem os 80 testemunhos que existem.
De repente, no livro, o Pedro Santos Soares é transferido
para Lisboa, uns quatro ou seis anos depois, e eu perco o
meu narrador. Eu não queria ser o auto-narrador, o livro é
contado na primeira pessoa, no tempo presente, por quem
viveu. Foi um desafio, ter o cuidado de não dizer “saí
pela janela, e entrei pela porta hoje de manhã”, mas antes
“estou a sair pela janela, entro pela porta”. Quando o
Pedro Santos Soares chega ao Campo de Concentração, ele
diz “aqui vamos nós, Edmundo Pedro, Gabriel Pedro, o
Francisco Nascimento, o Rato e eu. Eu, Pedro Santos
Soares”, e ele conta toda a história. De repente, vem para
Lisboa, e diz “Acabei de chegar a Lisboa. Eu, fulano e
fulano”. No parágrafo seguinte, “Estamos no Campo de
Concentração, eu, fulano, fulano, fulano e eu, Pedro”. É o
Pedro José da Conceição. E assim acontece com os
angolanos, os guineenses e isso liga as histórias. Quando
chegam os angolanos, o Pedro Benge fala dos fantasmas dos
portugueses que lá estão. A única divisão que faço é que
quando termino a história dos portugueses e entra outro
Pedro a contar, mudo a linguagem. Passo do português
alfacinha, para o falazar, o português dos anos 1950 de
Luanda. Igualmente, os guineenses vêm falar o português
guineense cheio de crioulo. Quando chegam os
cabo-verdianos, que são muito formais, herdaram isso dos
portugueses quinhentistas, vêm com esse português
carregado de “tendo em conta” e “considerando que”. Isso
demonstra a diversidade da língua, com as invenções das
palavras. Essa foi uma decisão. Quero que eles falem como
era, e permitindo ao leitor da língua portuguesa
compreender tudo isso. Dependia da minha capacidade de
escrever.
Público 2 – É aí que a ética se junta
com a estética? Dar a história não a um narrador, mas
colocar quem viveu a contar a sua história. Essa decisão
do narrador é mais ética do que estética. Imagino que a
escrita deste livro levantou várias questões éticas,
contar o sofrimento dos outros é de uma grande
responsabilidade. Gostava de saber quais foram as questões
éticas que surgiram e que podem o ter parado.
Mário Lúcio – No início, essa questão de
querer mostrar que éramos os mesmos lutadores e
resistentes, independentemente de uns seres portugueses e
outros africanos. A segunda questão ética foi contar desde
o ponto de vista de quem sofre e descobrir que quem sofre
tem uma perspetiva e uma fé. Isso ensina-nos que o horror
está sempre em quem o aplica e não em quem o recebe. Quem
te ofender, ele é que está ofensivo. Quem recebe tem a
opção de ter compaixão, tem a opção de transformar aquilo
em amor e poesia. Não pode conviver com a mesma arma e
continuar a destilar horror contra um especialista no
horror. Isso foi uma questão ética, de como contar o
sofrimento, mas com poesia, fé, solidariedade, reparação,
humor. Outra questão ética foi mostrar que, entre todas as
fraquezas humanas, a maior é o abandono de si próprio. De
certo modo, quando podia justificar os que estavam a
sofrer, responsabilizei-os. Não pelo que fizeram, mas pelo
que tinham pela frente, pelo que tinham por fazer, lendo
os seus testemunhos e compreendendo que tinham essa
tarefa. Tive várias outras questões éticas, mais de índole
pessoal. Tive de fazer uma investigação exaustiva sobre a
vida verdadeira de cada um desses prisioneiros. Tive de
usar os próprios nomes, as datas de nascimento, as datas
em que foram presos, as profissões, como eram. Se fumavam,
se não fumavam, se bebiam, se eram alcoólatras, se não
eram, para respeitar a memória da família. Por fim, a
última questão ética era dar um epitáfio a quem não teve
epitáfio. E o livro tem uma página dedicada a cada preso
morto no Tarrafal. E a página é só dele. A dizer: hoje
morreu Francisco Rato, nosso serralheiro mecânico. Ele não
teve direito a epitáfio e o livro guarda isso em memória.
No final resultou que eu apenas fiz um download
cósmico. Na verdade, quem escreveu o livro foram esses
personagens que estão ali, que contaram do jeito deles,
sem juízo nem preconceito, apenas a dizer o que viveram.
Cabe-nos a nós interpretar.
Público 3 – Da minha parte quero lhe dar
os parabéns, por nos estar a dar uma grande prova que é um
ser humano com uma alma grande, com uma grande
sensibilidade e uma grande capacidade de introspeção. Acho
que pessoas como o Mário fazem falta atualmente, pois as
nossas sociedades estão tão mortas, estão tão apagadas.
Fez-me lembrar o Nelson Mandela, porque não escreveu
tragédias, escreveu amor. Acho que ao ler os seus livros
interiorizo sentimentos nobres, que me fazem crescer e
olhar para realidades diferentes e me tornam melhor,
fazendo com que quem está ao meu lado também se torne
melhor. Nesse aspeto acho que o Mário acaba sendo um
profeta, porque qualquer pessoa que tenha esta capacidade
é o profeta do bem, o profeta do amor.
Mário Lúcio – O meu segredo sabe qual é?
Sou apaixonado até ao limite da deselegância. Nunca, nos
seis anos que tive na universidade, nunca usei um papel e
um lápis. Olhava com um apreço para os professores, que
quando precisava de lembrar, lembrava-me dos detalhes, do
momento da pronúncia das palavras. Do gesto, dos sons da
rua. Quando escrevo não uso notas, nem estruturo livros,
não uso anotações. Não é uma decisão, nunca pensei nisso.
Só estava a escrever com a mesma paixão e natureza, sei de
antemão que posso escrever tranquilo porque não vai haver
pormenores que firam sensibilidades. Não sou um profeta,
nem pretendo ser. Não sou nenhum guru, gosto de ser comum.
Gosto de ser sentido. É tudo. Há muito amor na humanidade,
no sentido amplo e até ao amor mais direto. Sou um grande
apaixonado. Digo-lhe que na escrita, na música, na relação
com as pessoas, a minha gratidão vem da perceção estética
do exemplar único. Da unicidade. Às vezes fico sentado num
parque, ou no aeroporto, sentado. Fico a ver as pessoas a
passar. Podem ser muitas, mas cada uma é um exemplar único
e fico fascinado com esse exemplar. É a minha paixão
visceral, que me inspira, ao conversar com as pessoas.
Público 4 – Gostaria de saber se se
lembra do seu processo de criação?
Mário Lúcio – Não, e pior ainda: não me
lembro das letras das minhas canções. Ainda bem que as
canções são minhas porque eu invento na hora. Já misturei
“repolho” com “diamante”. De tanto praticar consigo cantar
sem lembrar, mas se for lembrar, eu esqueço! Quanto aos
livros, eu gosto desse processo de não saber o que vou
escrever na página seguinte. Não sei o que vem depois, já
fui surpreendido, neste livro O diabo foi
meu padeiro, escrevi uma coisa e comecei a vomitar.
Estava a descrever a água que os presos iam beber, e eu
não sabia que ia escrever e não consegui escrever mais até
ao dia seguinte. Outro momento, é quando descrevo a morte
do Bento Gonçalves no livro, escrevi a chorar, porque foi
o meu companheiro de cela durante vários meses e, de
repente, foi-se embora. Tenho momentos de grande
satisfação, quando as pessoas leem o que escrevi. Sou
proibido de ir ao teatro ver a representação das peças que
escrevi, porque não deixo ninguém escutar. Dou gargalhadas
do princípio ao fim. Tem esse download cósmico,
sim. Nós escrevemos sim e passamos para suportes para
partilhar com os outros.
Apolo de Carvalho – Sobre essa questão
do download cósmico, já que estamos num espaço
académico, onde o nome daquele que produz o conhecimento é
muito importante, e essas outras existências, várias, que
compõem o nosso conhecer muitas vezes desaparecem, como
pensa a autoria do seu trabalho, dentro da academia e como
artista?
Mário Lúcio – É, tem sempre de se dizer
o nome do autor do download (risos). Isso é
fundamental. Resumidamente, o autor do download
tem de pagar a internet cósmica (risos). Ele vive, nem que
seja do éter, mas tem de viver das coisas materiais. É
importante. Nestes sete meses que estive sem fazer
espetáculos, consegui viver sereno graças aos direitos
autorais.
Apolo de Carvalho – Só mais uma questão,
estamos na Cena Lusófona, existe a Casa da Lusofonia e
pegando novamente na questão da crioulização, e sabendo
todo o discurso que existe em torno da lusofonia como o
terceiro espaço de existência e identidades, como pensa a
questão da lusofonia com a crioulidade?
Mário Lúcio – Todas as metáforas, todas
as línguas, são convenções. Convencionou-se chamar
“lusofonia” ao conjunto de países onde se fala português.
Tomar esse conceito como definição de identidade desses
países é errado. Dentro dessa convenção considero-me
pertencente a um país lusófono, mas etimologicamente,
culturalmente, não sou lusófono. Recentemente, no Corrente
D’Escritas na Póvoa de Varzim, propus que o correto seria
dizer “Países Africanos com Língua Portuguesa” e
não “de Língua Portuguesa”. A língua portuguesa é
desses países. Nós apoderamo-nos e tornamo-la num
património que usamos, e bem. Somos gratos a esse processo
de apoderamento que nos deu a língua, mas Guiné Bissau,
Cabo Verde, Angola, Moçambique, países com mais de 25
línguas, exceto Cabo Verde, (línguas!, não estou a falar
de dialetos, mas de línguas, bem estruturadas) são países
multilíngues, mas também com língua portuguesa, e isso é
importante. Agora, como disse, chamar um espaço ou uma
associação de lusofonia é bonito, os conceitos não têm mal
quando são bem usados. A sua relação com a crioulização
tem exatamente a ver com isso, pode se criar um espaço em
que os cidadãos originários dos países com língua
portuguesa se sintam numa comunidade chamada Lusofonia.
Seria de começar a corrigir, e acho que a academia nisso
tem muito peso. Dizer “Países com Língua
Portuguesa”, e não “de Língua Portuguesa”, que,
todos juntos, criam um espaço a que convencionamos chamar
de Lusofonia. Todos os espaços que incluem e não excluem
são grandes cenas e altares de comunhão e da melhoria do
nosso exercício na relação com o outro. Estamos cheios de
espaços que confinam e que separam, pelo que todos os
espaços que unam são bem-vindos.
Apolo de Carvalho – Para terminar, o que
é essencial em tempos de pandemia?
Mário Lúcio – Amor. O amor consegue
calibrar a sua antítese, o amor consegue apreciar toda a
dimensão do outro indivíduo, o amor consegue domar o
tempo, por mais veloz que seja a luz. Por isso é que se
diz que o amor é cego, porque consegue domar a luz e o
tempo. Não é só o amor platónico, mas o exercício prático
do amor. O ato de manusear qualquer coisa precisa de amor,
no gesto, no toque, de qualquer objeto. Porque é a nossa
matriz primeira, de quando deixamos de ser apenas vida
orgânica para passarmos a ser também vida social. Nesses
tempos, mais do que nunca, mais do que sempre, amor em
todos os seus sentidos, e cada um descobrirá a dimensão da
palavra. Amor na aceitação. Não posso sair, não posso
viajar, aceitar isso com amor e fazer as outras coisas
possíveis de serem feitas nesse tempo. Amor na partilha.
Saber que comer e extasiarmo-nos pode ter o seu lado
desequilibrado, se o outro estiver com fome. Grande parte
da violência vem da ignorância da carência do outro. Se
nos limitamos a viver e a desfrutar do que temos,
esquecemos da carência do outro. Aí o outro invade-nos,
invade o nosso território para ter o que não tem. Aquele
que estiver mais atento já tem uma forma de prever a
violência e o ataque. A palavra, o silêncio, a escuta, a
sabedoria, a sapiência são amor que o Outro emana. O Outro
tem sempre uma experiência única, se tivermos a sorte de
partilhar, é uma grande sabedoria. Não só em aspetos
oníricos, mas também em exercícios práticos. O exercício
do amor, em todo o tempo será igual, não vai sentir se
estamos em pandemia ou não. Colocar o amor até no amor.
Colocar o amor até no desamor.
[1]
O presente texto corresponde à transcrição da conversa com
Mário Lúcio, que ocorreu no passado dia 14 de outubro
2020, na Cena Lusófona, na sequência da sessão do dia
anterior com o título “A redução do Outro como reflexo da
incultura”. Esta sessão foi apresentada por Apolo de
Carvalho, que preparou também as perguntas iniciais. A
conversa foi posteriormente transcrita e editada pela
comissão editorial. O debate foi aberto ao público num
momento posterior. Por motivos de respeito da privacidade
dos envolvidos, as perguntas feitas pelo público que não
pertence ao programa doutoral em Pós-Colonialismos e
Cidadania Global foram identificadas como “Público”.
[2]
Mário Lúcio Matias de Sousa Mendes é
cantor, compositor, escritor, pensador, nasceu em 21 de
outubro de 1964, no Tarrafal, Ilha de Santiago, Cabo
Verde. É uma das figuras mais reconhecidas da cena
cultural cabo-verdiana, tanto local como
internacionalmente. É o escritor mais premiado do país
internacionalmente, o poeta que marcou a viragem na nova
poesia cabo-verdiana com o livro Nascimento de Um
Mundo, um dos conceituados pensadores da sua
geração, autor do Manifesto a Crioulização, a
obra mais atual sobre o fenómeno da crioulização no mundo.
[3]Apolo
de Carvalho é estudante do Doutoramento em
Pós-Colonialismos e Cidadania Global, na Universidade de
Coimbra, com um projeto de investigação centrado nos
panafricanismos contemporâneos, financiado pela Fundação
para a Ciência e Tecnologia.
[4]
É o mestiço, mais alguma coisa.
[5]
A crioulidade.
[6]
“Cinco meditações sobre a beleza”.
[7]
“A natureza não tem obrigação de ser bela, mas ela,
entretanto, é bela”.
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