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Entrevista a Alcir Pecora | 25 de setembro de
2015
conduzida e editada por Martina Matozzi e Nuno Lopes
Alcir Pecora é crítico literário e professor titular de
Teoria Literária no Instituto de Estudos da Linguagem da
Universidade Estadual de Campinas. É autor de inúmeras
publicações académicas e livros, entre outros, Teatro
do sacramento (Edusp/Editora da Unicamp, 1994); Máquina
de gêneros (Edusp, 2001) e Rudimentos da vida
coletiva (Ateliê, 2003). Tendo-se particularmente
destacado pelo seu estudo da obra de Padre António Vieira,
organizou dois volumes de Sermões (Hedra, 2000 e
2001).
Após ter marcado presença na Fundação Calouste
Gulbenkian, em Lisboa, no dia 24 de setembro de 2015, como
apresentador da obra Patrimónios de Influência
Portuguesa: modos de olhar (Walter Rossa e
Margarida Calafate Ribeiro, Org., 2015) o Professor Alcir
Pecora aceitou o convite de dois alunos do Programa de
Doutoramento Patrimónios de Influência Portuguesa,
concedendo-lhes um encontro, a 25 de setembro de 2015.
A entrevista que aqui publicamos revela a apreciação e a
interpretação crítica que o Professor deixou deste livro,
bem como a sua reflexão teórica acerca das questões do
património que sempre nos interrogam. Na tentativa de uma
melhor leitura e potencializando o seu valor didático, as
perguntas foram formuladas de modo simplificado,
evidenciando a negrito as palavras-chave.
NL A obra Patrimónios de
Influência Portuguesa: modos de olhar, que tem como
origem o programa de doutoramento Patrimónios de
Influência Portuguesa, sustenta uma preocupação
multidisciplinar e de natureza intercultural, desafiando
a nossa ação sobre várias áreas científicas. Eu, por
exemplo, sou formado em Arquitetura e a minha colega
Martina em Línguas Modernas e Estudos Interculturais. O
livro, realizado por docentes do doutoramento, surge
como uma espécie de convocatória à divulgação deste
conjunto de olhares e metodologias sobre o que é esta
substância dos Patrimónios ,
no plural: do linguístico
ao edificado, entre todas as variantes intrínsecas.
Deste modo, a partir da sua perspetiva da Teoria
Literária e, sobretudo, como alguém que vê “de fora”
este programa e estes olhares sobre os
patrimónios, pergunto-lhe como os analisa: se os
considera inovadores, se as metodologias
adotadas são uma evolução ou uma rutura com as áreas
científicas tradicionais; no fundo, de que modo traduz
tudo isto?
AP Eu penso que os textos do
livro são muito atualizados nas discussões
de suas áreas respectivas e o conjunto é muito
representativo de um esforço de aggiornamento
do tema do Património. Trata-se de uma tentativa séria
de abordar, rever e organizar conceitos de vários campos
disciplinares usualmente associados ao Património. Nesse
sentido, o trabalho não pensa a monumentalidade dos
objetos artísticos isolados, mas procura entender as
suas implicações sociais e a sua disposição em favor de
um futuro mais harmónico. Como alertam os
organizadores, o livro não representa um gesto de
nostalgia romântica, mas de ação intelectual cujo
propósito é subsidiar políticas de ação favoráveis à
cidadania. Cada um dos ensaios tenta
reconstruir o sentido de “património” ou
“patrimónios” no contexto pós-colonial. Para mim, o
livro se constitui num verdadeiro tour de force
, vale dizer, num esforço concentrado de especialistas
em áreas muito diversas que reelaboram conceitos para
dar conta dessa nova perspetiva, cujas respostas não são
fáceis. O resultado desse esforço intelectual é uma
coleção interdisciplinar cuidadosamente organizada no
livro, que é composto por duas partes,
separadas por uma entrevista dos organizadores com
Eduardo Lourenço. A primeira parte discute criticamente
os conceitos tradicionalmente afeitos ao património como
memória, herança, identidade, comunidade, colonialismo,
origem, influência, entre outros. A segunda trata das
disciplinas envolvidas e dos novos instrumentos de
investigação propostos por elas. A minha forma de
agradecer intelectualmente este trabalho é falar dele do
ponto de vista teórico, considerando a minha formação.
Nesse âmbito levantaria três questões.
A primeira diz respeito ao facto de que, entendido
da forma aqui apresentado, o património tende, em certa
medida, a desmaterializar-se, passando a exigir uma
teoria. Não se trata de conservar obras particulares,
com qualidade estética ou histórica, mas de formular um
campo teórico em que o património se reinventa,
estendendo-se das obras aos conceitos, mais que dos
conceitos às obras. Isso é perfeitamente lógico no
contexto atual, mas é também iniludivelmente
problemático, já que a própria interdisciplinaridade
proposta é transferência das disciplinas para um espaço
de modelagem teórica, em que a prática delas perde passo
para a conceitualização metalinguística e metateórica.
Se essa operação de modelagem é produtiva e pode levar a
dissolver vários enganos da política patrimonial do
passado, é também um processo de abstratização do
património que, em determinados momentos, parece
depender mais da imaginação do estudioso do que da
existência histórica das formas e estruturas. E o
problema da imaginação do estudioso é que ele imagina
por paradigmas redundantes, de tal forma que a teoria é,
ao mesmo tempo, nova e repetida.
Além da precedência teórica, os estudos deixam
entrever uma perspetiva culturalista, usualmente
edificante, isto é, que mostra boa vontade geral diante
das relações assimétricas entre os povos recobertos pela
ideia de influência portuguesa, e que favorece quase
como parti pris as ideias de
multiplicidade, pluralidade, diferença etc. Esse é um
problema inerente aos estudos culturais: eles nascem de
perspetivas que têm um grande sentido de justiça e de
ética do tratamento das diferenças e pluralidades das
diversas comunidades mas, além ou aquém dessa boa
vontade, estão as obras, as cidades, as culturas que, em
geral, existem na contradição, na concorrência por vezes
insolúvel entre as partes e, mais ainda, no terreno
minado da globalização. Se é óbvio que todos esses
trabalhos não querem celebrar o passado nacionalista,
também é importante que não incorram numa espiral de
idealismo que se desprenda do solo duro em que todos
vivemos e no qual invariavelmente predominam políticas
muito parciais, senão muito toscas. Se não queremos que
a questão do património seja uma epopeia do
colonialismo, temos de estar muito atentos para não
fazer dos estudos pós-coloniais uma épica da
globalização.
Finalmente, é evidente o recuo da estética nessa
nova perspetiva integradora do Património. Se cresce a
atenção aos direitos e diferenças, diminui na mesma
intensidade a nossa capacidade crítica de avaliação do
que se postula como diferente. Que categorias seriam
adequadas para um juízo estético quando o património se
associa sobretudo à criação de comunidades plurais com
direito a partilhar um espaço até então ocupado
exclusivamente pelas culturas de um centro hegemónico
que nunca foi compreensivo? Desse ponto de vista, fico a
pensar se o custo das teorias da partilha deve
significar necessariamente o sacrifício do estético, do
objeto, da forma. Quando a forma deixa de ser decisiva,
pode-se ter comunidades de direito, sociedades justas e
que convivem bem, mas não há património artístico.
São questões que formulo não como crítica do
livro, mas como desdobramento do momento tumultuado em
que vivemos de que o Património – prova-o sobejamente o
livro – revela os seus impasses, contradições e dilemas
mais entranhados.
MM Quem hoje
estuda os “patrimónios de influência portuguesa”
encontra-se perante um arco temporal vastíssimo, uma
multiplicidade de identidades, culturas e geografias,
legados literários e edificados que carregam as memórias
de uma história partilhada repleta de contradições e
violências, que nos leva a contemplar e negociar com
elementos parciais, silêncios e ruínas. Neste âmbito,
conceitos como influência e história
parecem constituir uma “constelação crítica” (Benjamin,
1991: 83) necessária no âmbito da investigação sobre
patrimónios. Numa contemporaneidade “presentista”
(Hartog, 2013), onde a identidade – usando as palavras
de Stuart Hall – é uma “celebração móvel” (Hall, 1998:
12-13), de que forma aprecia as diversas reflexões sobre
os “patrimónios de influência
portuguesa” apresentadas no livro que acabou de ser
publicado?
AP Penso que a questão dos
patrimónios e da influência portuguesa
obriga o livro a tentar “colocar o pé em duas barcas”.
De um lado recusa a ideia de património como uma coisa
unívoca, determinada pelo centro colonial e pensada como
uma celebração de grandes monumentos da História
portuguesa, dentro do conjunto tradicional do
Estado-Nação. Há uma recusa clara, em todos os
trabalhos, do que se entende normalmente por património,
daí já a ideia de Patrimónios no plural. Os autores
estão dispostos a imaginar isso como um conjunto aberto
que se pode incorporar de diversas maneiras, origens,
lugares, regiões, sítios, situações sociais.
Passa-se o mesmo com a escolha do
termo “influência” para associá-lo preferentemente ao
plural “patrimónios”. Ao mesmo tempo em que
os estudos recusam uma ideia monolítica de “património
monumental” e de “celebração do Estado”, não chegam a
abdicar de uma ideia de “influência portuguesa”. Não se
quer abandoná-la totalmente, abdicar de uma ideia de
Portugal como origem e pensar numa dispersão radical.
Mas admite-se uma negociação dessa influência, tentando
considerá-la de modo não unidirecional a partir da
matriz portuguesa. Há um esforço para transformar a
ideia de influência na ligação mais leve possível, menos
autoritária possível, mais disposta favoravelmente a
sofrer interferências das antigas colônias, mas é
evidente que nada nunca é tão leve assim. As
contradições não são menores com o emprego desse termo,
e isso reaparece, como um recalcado que retorna, em
vários momentos do livro.
De modo geral, individuei no livro três linhas de
leitura. Uma mais dura, de crítica do colonialismo ou de
anticolonialismo. A segunda é uma linha mais ecuménica,
onde os patrimónios estão em construção, não há uma
identidade forte a ser preservada e o que se pode fazer
é tentar estabelecer elos, construir um presente a
partir das fragilidades. A terceira parece ser linha de
alguns autores que tendem a produzir o discurso da
conciliação centrado nos autores modernistas
brasileiros; é o que ocorre exemplarmente quando
recorrem à noção de “antropofagia” como resolução das
contradições. Nesse caso, a ideia de “patrimónios” tende
a significar a capacidade de importação da sua própria
cultura, a disposição de assimilar tudo numa política de
miscigenação, em que tudo se resolve, por assim dizer,
num processo de osmose: o que é estrangeiro, logo vira
brasileiro. A meu ver, francamente, há um bocado de
mitologia aí: são integrações demasiado fáceis e
rápidas, que se mostraram incapazes de dar conta das
assimetrias e violências históricas, tanto as do passado
como as do presente.
NL Numa aproximação ao meu
projeto de doutoramento, o sistema defensivo de Goa
estabelecido pelos portugueses entre a chegada à Índia e
o século e meio que se seguiu, tenho desenvolvido
diferentes olhares sobre estes patrimónios,
que contemplam também diferentes culturas. Porventura
transferindo-o um pouco dos domínios da sua área de
conhecimento, verifico grandes distinções entre o
contexto e a influência de Padre António Vieira
na aplicação de políticas da Companhia de Jesus para os
indígenas no Brasil e aquilo que se
passara durante a ocupação portuguesa na Índia,
onde a cultura e a religião se encontravam já fortemente
enraizadas. Qual a sua reflexão a este respeito?
AP Sobre isso Vieira tem uma
imagem muito conhecida. Dizia que nos jardins de
Príncipes que conheceu – e ele visitou várias cortes da
Europa – havia dois tipos de estátuas: as estátuas de
mármore e as estátuas de murta. As estátuas de mármore
eram feitas sempre com muita dificuldade: os escultores
sofriam para conseguir a forma que pretendiam para as
suas obras mas, assim que a conseguiam, como efeito do
trabalho árduo que fazia sangrar as mãos, pela dureza do
material e dos instrumentos, podia depois chover e
trovejar, que as estátuas ficariam lá, intatas, para
sempre. Por outro lado, as estátuas feitas de murta
dobravam-se com facilidade aos instrumentos do escultor,
que rapidamente lhes dava a forma desejada. Pois tal
seria, segundo o Padre Vieira, a diferença entre os
índios brasileiros e os nativos orientais. Os Brasis –
como ele chama os índios – aceitavam tudo que lhes era
pregado, dispunham-se logo a ajudar na missa,
confessar-se, comungar-se… Toda a gente fazia festa a
cada novo ritual católico que lhes era apresentado. No
outro dia, porém, estavam esquecidos de tudo. E nem
sempre se podia começar de novo, porque muitas vezes os
índios nem sequer estavam lá, no mesmo lugar, pois eram
nómadas. Este era o desespero dos padres, à facilidade
da adesão à nova fé correspondia perfeitamente o
esquecimento rápido de tudo o que tinham aprendido.
Vieira diz que esta era a pior das experiências da
conversão, a de ter diante de si gente que não oferecia
contradição. Com os Japoneses ou os Indianos, que tinham
culturas muito formadas, crenças enraizadas, era
necessário disputar, argumentar fortemente, e quando se
convenciam, então era para sempre. Quando finalmente
acreditavam na fé católica, eles estavam igualmente
dispostos a morrer por ela, sem abjurar da fé.
Tal é o que Padre Vieira dizia da diferença entre
estas duas culturas: uma que apresenta fricção,
resistência, mas que oferece uma base argumentativa
sólida para a conversão; outra, que lhe parecia
semelhante a falar ao vento. Conclui então que não pode
haver conversão sem oposição. Mutatis mudandis, penso
que os brasileiros continuam um pouco com este tom: o de
recusar a ideia de confronto, de imaginar que os
colonizadores viraram brasileiros rapidamente.
NL Para além de questionar a
influência do referido sistema defensivo na constituição
do território atual de Goa, a uma escala, importará
compreender os elementos e as tipologias de cada
estrutura, a outra escala, assim como os seus
significados na contemporaneidade,
para as pessoas que deles dispõem. Como diria Walter
Rossa,“[…] o património apenas cumpre
a sua função se for reconhecido por todas as partes: por
quem o construiu, quem o usufruiu e quem prolonga a sua
memória” (Rossa, 2015: 24).
Pergunto-lhe: se a maioria destes objetos estão hoje ao
abandono, significa que este património não cumpriu a
função que aparentemente lhes estava destinada, ou será
o conceito de cultura que ainda não
determinou uma renovação gradual do conceito do
património?
AP É difícil responder em
abstrato, já que não conheço Goa. Mas posso fazer um
correlato com a situação brasileira. No caso do Brasil,
o impulso modernizador é muito maior do que o de
recuperação das origens ou de manutenção e valorização
dos passos de um trajeto histórico. Os eventos passados
determinam pouco no ritmo de crescimento das cidades,
que é sempre muito acelerado. As cidades, em parte, são
acampamentos, sempre a construir-se e a deitar abaixo o
que veio antes, como obsoleto. Os patrimónios históricos
determinados por decisões oficiais não seriam capazes de
deter esse impulso imediatista, desenvolvimentista,
“presentista”. Na Europa, os pesos estão distribuídos de
maneira diversa; não tenho ideia de como seriam na
Índia. Pela minha experiência, na Itália e especialmente
em Roma observo um equilíbrio admirável entre presença
da herança antiga e a integração dela à vida presente. A
porta do Pantheon , por exemplo, tem dois
mil anos, é a porta original do templo. E ali, ao pé
dela, mendigos dormem, turistas tiram fotos, atores se
fazem passar por romanos antigos, vendem-se lembranças,
e passam as pessoas todas da cidade. Há quem ache isso
desleixo e que gostaria de isolar esses monumentos ou de
pintá-los de dourado. Eu não. Eu amo esse tipo de
promiscuidade temporal, a que não falta nunca o consenso
da beleza e de haver ali uma obra de que se orgulhar.
Ali, o antigo Pantheon e a urbe contemporânea estão no
mesmo passo; as ruínas são parte da vida urbana do
presente.
Pelo que percebi da leitura do livro, a maior
parte dos autores estão menos interessados nas origens
do que na possibilidade de ordenação harmônica do
presente. A ideia geral de património ultrapassa em
muito a ideia mais tradicionalmente conhecida de
“monumento”. O grande interesse do grupo de investigação
é o da constituição daquilo que Walter Rossa chama de
“paisagem urbana do presente”, em que a vida das pessoas
é preservada. Esses conjuntos harmónicos, que ele
entende por urbanismo, estão muito mais associados à
constituição de formas de vida contemporâneas
interessantes do que à preservação dos monumentos do
passado. Portanto, nesta perspetiva de patrimónios, o
abandono dos monumentos parece não ser o acontecimento
mais decisivo. Infelizmente, nesse mesmo movimento de
utltrapassamento do monumento também parece haver a
ultrapassagem da forma artística e dos assuntos
estéticos. Terá de ser assim? É uma pergunta que deixo
para os autores do livro. O escritor austríaco Hermann
Broch na trilogia dos Sonâmbulos diz, numa
certa altura, que quando tudo se perder, as ruínas serão
o mais eloquente sinal de humanidade. Existem coisas que
eu não gostaria de ver perdidas de modo nenhum. Por
exemplo, pensando no caso da destruição do Templo de
Bel, de Palmira, seria possível dizer que a destruição
produzida ali é também um património? A destruição do
templo poderia significar outro princípio de património?
Não é uma ausência de património, mas uma nova cultura
que se insere? É talvez possível pensar nesses termos,
mas destruir Palmira para mim é imperdoável, porque
justamente ali, e não em outro lugar, existe uma
realização material única que não poderá jamais ser
substituída. Para aquele templo já não pode haver outro
princípio, outro presente. É o fim, pura e simplesmente,
e a sua destruição tem de ser tratada como crime.
MM Padre António Vieira,
enquanto escritor, jesuíta, pregador, político,
missionário e, sobretudo, homem de ação, deixou, com a
sua obra, um vasto legado que é fundamental para a
perceção do contexto europeu e americano do século XVII.
A partir da sua experiência como estudioso da obra do
jesuíta, de que maneira é possível olhar hoje o património
literário que este deixou?
AP O Padre Vieira tem uma
produção imensa e intensa, com vários textos ainda
inéditos. Mas se tivesse que escolher o que existe como
obra definitiva, penso que o grande património vieiriano
são mesmo os sermões. São o núcleo do que produziu e
editou em vida. Embora ele tenha pregado durante muito
tempo de sua vida longa, ele reescreveu toda a obra que
nós conhecemos como sendo os seus sermões, nos últimos
vinte anos da vida, por ordem do geral dos jesuítas, o
italiano Giovanni Paolo Oliva, que era também ele um
grande pregador. Graças a isso, talvez, ele apercebeu-se
do alcance literário, e não somente místico da pregação
de Vieira; assombrou-o a força de sua palavra, assim
como a reconheceu a elite intelectual do período, que
frequentava o salão da Rainha Cristina da Suécia, em
Roma. Vieira, no entanto, ficou muito contrariado com a
ordem do Geral, porque estava mais interessado na sua
obra profética. Mas eu agradeço sempre ao Geral, a quem
devemos essa escritura dos sermões, que é efetivamente
escrita e não apenas transcrição de orações faladas,
como parecem supor muitos. Eu conheci essa grandeza dos
sermões de Vieira na minha própria pele, por assim
dizer. É que, enquanto escrevia a minha tese de
doutoramento, tive que viver diariamente esse
sofrimento: ler o que Vieira escrevia e depois ter que
conviver com as pobres frases que eu conseguia rascunhar
a respeito do que lia. Foi uma longa e humilhante
experiência. Vieira me obrigou a saber perfeitamente o
quanto o meu português era miserável.
Embora considere os sermões o material mais
monumental de Vieira, não penso neles como um monumento
do passado. A escrita de Vieira me parece tão viva
quanto a do melhor escritor contemporâneo. As alegrias
que se podem ter diante de sua obra são agora tão
extraordinárias como antes.
Mas eu tenho outra forma de lhe responder sobre a
ideia de Património em Vieira, e ainda mais considerando
a noção de pós-colonialismo ou descolonização. Nos meus
estudos sobre a obra de Padre António Vieira, o
verdadeiramente descolonizador, em termos intelectuais,
não é falar da resistência que ele podia representar
face à uma suposta dominação portuguesa ou europeia. Ao
contrário, considero descolonizador dissolver disputas
identitárias e nacionalistas em torno de sua obra. Certa
vez, numa experiência que tive de dar aulas para
docentes latinoamericanos de Universidades
norteamericanas, enquanto eu falava de Vieira, alguém me
perguntou um pouco decepcionado com a forma estritamente
jesuítica com que o apresentava: «Mas quais as
resistências que ele apresentava face a Portugal?» Eu
respondi que não apresentava resistências nenhumas, ele
se sentia jesuíta e português, conquanto vivendo longos
períodos no império do ultramar. E depois, em outras
ocasiões, não faltou quem me acusasse de entregar Vieira
aos portugueses, em vez de reivindicá-lo para o Brasil,
como patrioticamente fez Afrânio Peixoto e tantos outros
acadêmicos brasileiros, mas como, se então não havia
“Brasil”! Quem me colocava esta pergunta queria que se
definisse uma identidade de resistência na grande obra
de Vieira, mas isso é um tipo de postulação
romântico-nacionalista totalmente estranha a ela. E eu
sempre fico com a obra, não com as reivindicações
valentes e patrióticas.
MM Pensando no que hoje
poderíamos chamar património literário de
influência portuguesa, como vê a confluência
das suas heranças – isto é, o
património de narrativas portugueses, de alguma forma
fundadoras, que percorrem o que veio a ser
historicamente a presença colonial portuguesa, bem como
testemunham os processos de descoberta – e de que forma
aprecia as suas reescritas – isto é, a
revisitação em português desses mesmos textos herdados?
No caso brasileiro, lembro-me, por exemplo, na
Carta a El-Rei Dom Manuel de Pêro Vaz de Caminha e nas
suas inúmeras reescritas, entre as quais a Carta
às Icamiabas em Macunaíma de Mário de
Andrade, mas também a canção de Caetano Veloso Tropicália.
AP A maior parte dessas
reescritas são só paródia sem interesse. Você falou dos
tropicalistas. Há uma recriação interessante de Caetano
Veloso de um soneto do Gregório de Mattos: “
Triste Bahia! Ó quão dessemelhante / Estás e estou do
nosso antigo estado! / Pobre te vejo a ti, tu a mi
empenhado, / Rica te vejo eu já, tu a mi abundante […]”.
A canção é bem feita, mas o sentido é muito
diverso do original. Gregório de Mattos, ao contrário do
que se costuma pensar na Bahia, era um homem próximo do
poder, um jurista, não era um defensor da independência
do Brasil, não era a favor da absolvição dos escravos,
estava longe de ser defensor de negros. Quando falava de
negro, aplicava-lhe as tópicas usuais desqualificadoras
de priápico e bestializado. Quando imitava sons da fala
dos índios e dos negros na sua escrita era sempre com
efeito cômico e rebaixado. E muitos no Brasil tomam os
poemas de Gregório como libertários e modernistas. Não
eram, infelizmente.
Gostaria de alertar para um risco: o do
autoritarismo de achar que uma visão politicamente
correta tem direito de rasurar a história e censurar as
obras do passado. O bom mocismo decreta sem remorsos que
a história não importa. Na Itália, por exemplo, uma
sociedadede – de que me esqueço justamente o nome –
pediu que Dante deixasse de ser ensinado nas escolas com
o argumento de que ele era homofóbico, racista e
antissemita. Em Portugal, me admira que ainda não tenham
feito o mesmo tipo de acusação em relação a Camões, em
cuja obra não faltam exemplos de tudo isso. Aqui, no
entanto, é preciso ser duro na defesa do monumento. Como
pensar Itália e a história da Literatura Italiana sem
Dante? Ou Portugal sem Camões? Declarar que essas obras
não devem ser lidas ou que têm de ser censuradas é um
autoritarismo incrível: aquele que decreta que a
história não conta. Nesse sentido, a ideia de património
é importante, porque não abdica da história, embora
esteja interessada na integração desse passado num
presente mais harmónico. A ideia da qualidade estética
da obra não é necessariamente contraditória em relação a
uma perspetiva mais progressista de compreensão do
património.
MM Professor, no meu percurso
de doutoramento no PIP, dediquei-me ao estudo da representação
da experiência migratória na Literatura Portuguesa.
Gostaria de saber se, do seu ponto de vista, na
sociedade brasileira atual, com as suas múltiplas
influências oriundas de diferentes e longínquas
experiências migratórias, a imagem de Portugal continua
a ser de “colonial”, porquanto sabemos
da importância numérica da chegada em massa de
portugueses ao Brasil – bem como de imigrantes de outras
nacionalidades, como os italianos, por exemplo – no
final do século XIX e ainda durante o século XX. Neste
âmbito, qual a sua perceção do legado da emigração
portuguesa no Brasil?
AP Esse património existe,
claro, ainda que nem sempre reconhecido. Portugal, em
especial, está em toda parte do Brasil. Rio de Janeiro,
Minas Gerais, Bahia trazem a presença portuguesa bem à
vista: quem quer que olhe a cidade percebe logo que o
conjunto arquitetônico tem uma implantação portuguesa.
Os prédios antigos de Ouro Preto são apenas o exemplo
mais óbvio. A culinária de Minas Gerais e de todo o
país, a não ser em regiões mais afastadas, é toda de
base portuguesa. No Rio de Janeiro, a cultura portuguesa
está presente em tudo, tanto no registo popular, como no
erudito; por exemplo, mantém-se lá, viva, a tradição
filológica dos liceus de língua portuguesa. A comunidade
portuguesa é viva e atuante em quase todas as cidades
brasileiras. Mas o Brasil tem essa coisa engraçada de
nunca se pensar como tendo sido colônia. Talvez porque,
numa certa altura, a imagem de Portugal como pátria de
imigrantes pobres prevaleceu na imaginação do país sobre
a de sede do império colonial. Mas não é apenas isso,
pois até os estudos de história e literatura colonial
são muito parcos no Brasil. Daria trabalho dizer porque,
em termos rápidos, mas o fundamental está em que, a
partir da independência, houve um grande esforço das
elites para se vincular à França e ao que consideravam
mundo progressista. Um forma de demonstrar a própria
modernidade foi, portanto, obliterar a relação com
Portugal. Até pouco tempo atrás, havia muito
departamento universitário, no Brasil, que se julgava
uma espécie de departamente francês no ultramar. Não sei
se acham isso mais cômico ou mais triste. O certo é que
o país nunca conseguiu ser exemplo de modernidade e
perdeu a oportunidade de tornar-se consciente de seu
vínculo mais estreito com o país de origem.
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Tomaz Tadeu da Silva e Guacira Lopes Louro].
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Menezes, Bruna Breffart, Camila R. Moraes, Maria Cristina
de A. Silva e Maria Helena Martins].
Ribeiro, Margarida Calafate e Rossa, Walter (2015), Patrimónios
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Rossa, Walter (2015), "Patrimónios comuns", Jornal
de Letras, Artes e Ideias, 16 de setembro, 24.
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