O atual número da revista Cabo dos Trabalhos é
composto por ensaios da autoria dos/as estudantes da turma
2020/2021 do Programa de Doutoramento Discursos: Cultura,
História e Sociedade. Estabelecido em parceria entre a
Faculdade de Letras, a Faculdade de Economia e o Centro de
Estudos Sociais, este programa transdisciplinar
permitiu-nos analisar a complexidade de um vasto conjunto
de fenómenos do nosso presente e da nossa época, na
diversidade das perspectivas disciplinares e das epistemes
que as autorizam nas suas práticas bem como nos seus
discursos. Perpassando as áreas dos estudos
literários/culturais, da sociologia e da história, o
programa procurou desafiar-nos no sentido de reconhecer a
relação entre linguagens e poder, provocando debates e
estimulando reflexões sobre as fronteiras entre os saberes
e as linhas abissais que cindem as nossas formas de
conhecimento do mundo.
Os ensaios aqui publicados refletem, portanto, a
transdisciplinaridade característica do programa e das
suas unidades curriculares. Vale acrescentar, neste
propósito, que a turma não somente se apresentou, desde o
começo, fortemente heterogénea no sentido da sua
composição e formação, mas também aproveitou esta
heterogeneidade de uma forma excecional, lidando com as
necessidades da troca, do diálogo crítico e do mútuo apoio
entre colegas, no regime de seminários virtuais
estabelecido pelo CES para melhor lidar com a pandemia e
assegurar a segurança de todos e de todas. Estas
circunstâncias, embora não tenham afetado a qualidade dos
seminários e das trocas ocorridas durante os semestres de
aulas, nem sempre facilitaram as ocasiões de
aprofundamento e de trabalho de grupo. Não obstante, os
ensaios aqui recolhidos representam, com efeito, uma
dessas ocasiões de concretização colaborativa dos esforços
feitos singular e coletivamente. Infelizmente, por outro
lado, não incluem vários/as colegas que entretanto
deixaram o programa, por várias razões, muitas vezes mesmo
por causa do difícil contexto acima referido.
Redigidos no contexto de avaliação das diferentes
unidades curriculares do programa, os ensaios foram
sujeitos a um processo de revisão pelos/as seus/suas
autores/as e pela coordenação editorial com o objetivo de
serem transformados em artigos para publicação. Partindo
de uma perspetiva crítica, o conjunto de ensaios
publicados incluem reflexões sobre abordagens
metodológicas, análises de obras literárias e reflexões
sobre linguagem, polis e poder.
O trabalho de Beatriz Marques Gonçalves, desenvolvido no
contexto do seminário de
“Metodologia e Estudos de Referência” ministrado pela
Doutora Sílvia Portugal, aborda criticamente a questão da
“voz” do/a investigador/a em relação àquela da população
pesquisada, apontando para soluções estratégicas e boas
práticas metodológicas em pesquisas qualitativas,
nomeadamente na perspetiva da Investigação Narrativa.
Clara Martins Pinto, que igualmente desenvolveu o seu
trabalho no seminário em causa, apoia-se nos escritos de
Paul Feyerabend e Howard Becker e parte do seu singular
percurso investigativo para provocar uma reflexão sobre a
influência que o percurso pessoal de cada investigador/a
tem nas suas escolhas metodológicas, abrindo espaço para
uma discussão sobre “metodologias da libertação”, como a
própria apelida.
Também Yuri Brito dos Reis, na exposição do seu trabalho
artístico desenvolvido no contexto do grupo ‘Cine Ebó
Latinoamericano’, aprofunda de forma concreta a prática
colaborativa e auto-etnográfica da metodologia baseada na
interdisciplinaridade das artes, tratando a dimensão
estética da pesquisa enquanto recurso alegórico de
conhecimento bem como potencial matriz de intervenções
contra-hegemónicas inspiradas nas epistemologias do Sul.
No seu trabalho, Marianna Monteiro aborda a linguagem
poética na música de Caetano Veloso, convocando ao mesmo
tempo a obra e a vida do artista, no contexto histórico
específico do seu exílio para Londres durante a ditadura
militar brasileira. Ela discute assim várias contribuições
teóricas examinadas no seminário de “Poética e Cidadania”,
ministrado pela professora Graça Capinha, considerando a
dimensão intertextual das letras do célebre intérprete do
Tropicalismo bem como o antagonismo que entre as línguas
(inglês e português) nessas mesmas letras ocorre.
Ainda no âmbito deste seminário, Tiago Nabais considera
atentamente uma “corrente” contemporânea na literatura
chinesa, a assim chamada Poesia Dagong,
contextualizando a origem socioeconómica dos/as
autores/as, os conflitos sócio-históricos no campo
literário do país e apresentando também preciosas
traduções em português da principal antologia Dagong.
Além disso, o seu trabalho aprofunda as reivindicações
deste tipo de escrita e dos/as poetas envolvidos/as, cujo
propósito é resistir às explorações neoliberais e às
injustiças sistêmicas no mundo do trabalho e, mais do que
simplesmente enunciá-las, por meio de formas estéticas
legitimadas na crítica, denunciá-las.
Já Graziela Ares apresenta uma proposta de análise
crítica sobre a diversidade linguística na Índia. É dado
particular enfoque às minorias linguísticas e à luta pelo
justo reconhecimento das mesmas. O ensaio encerra com uma
reflexão sobre as obras do poeta Adil Jussawalla e do
romancista Salman Rushdie a propósito do conceito de
literatura menor, proposto por Gilles Deleuze e por Félix
Guattari.
O ensaio de João Paulo Pedro, por sua vez, parte da
leitura crítica de dois poemas de William Archila e de um
poema de Sheryl Luna e procura refletir sobre o conceito
de linha abissal, proposto por Boaventura de Sousa Santos.
Dialogando com o ensaio “A-Poética” de Charles Bernstein,
trata-se de uma reflexão sobre as potencialidades que a
poética produzida no lado Sul da linha abissal apresenta
para evidenciar as relações desiguais de poder e para
ensaiar modos de fuga ao poder dominante do Norte.
O trabalho de Joaquim Pinto da Silva, diversamente, foi
desenvolvido no âmbito do seminário de “Ditadura,
Transição e Democracia” ministrado pelo Doutor Rui Cunha
Martins. O autor problematiza de forma original e crítica
os princípios basilares da democracia ocidental, em
primeiro lugar considerando a exclusividade da língua dos
direitos, isto é, a exclusão das minorias linguísticas; em
segundo lugar, considerando as conseqûencias disso na
constituição do Estado democrático e da liberdade dos/as
cidadãos/ãs.
Por último, no âmbito do seminário “Discursos da
Violência” orientado pela Doutora Catarina Martins, Mattia
Faustini ensaia uma análise filosófica da violência
representada em algumas passagens de A paixão segundo
G.H. de Clarice Lispector. A partir das reflexões
desenvolvidas – por um lado, por Derrida, por outro, por
Agamben – sobre a animalidade e a sua ‘outridade’,
questiona-se o papel da literatura enquanto domínio da
palavra e o papel da animalidade enquanto dispositivo de
‘nudez’ na escrita autobiográfica.
Os ensaios desta edição, no seu conjunto, refletem o
trabalho desenvolvido ao longo dos seminários da
componente letiva do programa e espelham, também, os
diferentes interesses de investigação e preocupações
dos/as seus/suas autores/as, cuja diversidade de percursos
académicos e trajetórias individuais em muito contribuiu
para a construção de um diálogo rico e desafiante em todos
os seminários.
A coordenação editorial
Beatriz Marques Gonçalves e Mattia Faustini
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