Editorial
Este número do Cabo dos Trabalhos foi
produzido pelo grupo de estudantes da turma 2017/2018 do
Programa de Doutoramento em “Pós-Colonialismos e Cidadania
Global”.* A heterogeneidade dos ensaios
aqui apresentados é um testemunho da diversidade do grupo,
nas suas variadas perspectivas, estórias, jornadas e
lutas.
Ao longo do ano letivo, o curso
forneceu-nos o vocabulário necessário para o
aprofundamento de um diálogo mais fecundo entre nós, assim
como o silêncio que nos encorajou a escutar e aprender
mais sobre as várias epistemologias e posturas políticas
presentes na turma, permitindo-nos estabelecer conexões e
reunir conhecimentos que contribuíram (e continuam a
contribuir) para as nossas investigações individuais.
Embora este processo tenha ocorrido no
espaço académico, por natureza regulado por determinadas
abordagens ao conhecimento - tal como o paradigma
“sujeito-objeto” - procuramos trabalhar não apenas em
termos das perspectivas epistemológicas, mas também no que
diz respeito aos processos de produção de subjectividades.
Esta não foi uma tarefa fácil pois implicou resistir às
estruturas e restrições da academia (nomeadamente
metodologias hierárquicas, a formalidade da linguagem, o
formato físico do espaço das aulas e as relações de poder
entre professores e alunos), através de uma ocupação
diferente do espaço destinado aos seminários, que passou
pela reconfiguração das mesas em círculo, a incorporação
de exercícios do teatro do oprimido, da poesia, ou o
transporte dos debates e apresentações para espaços
exteriores à sala de aula. O principal objectivo foi criar
um espaço seguro para discutirmos e conectarmos saberes,
memórias e traumas sociais e políticos de forma mais fiel
e adequada às nossas lutas cotidianas.
A heterogeneidade das contribuições é
espelhada na diversidade linguística desta coleção de
artigos, sendo que o espectro linguístico foi considerado,
no início, um obstáculo, mas veio a revelar-se um dos
pontos fortes mais relevantes do grupo, que superou o
desafio experimentando diferentes formas imaginárias de
comunicação.
No seu conjunto, a diversidade dos ensaios
aqui reunidos reflete:
- o conceito de diáspora, concentrando na
pertença a comunidades, nações e estados-nação, em que os
termos diásporas foram definidos, buscando localizar o
indivíduo neste discurso;
- o Mediterrâneo enquanto espaço
estruturalmente ambíguo, como Sul interno do Norte global
e como fronteira Norte do continente africano, enquanto border
– margem de exclusão e cruzamento de linhas abissais – e
como fronteer – superfície aquática de conexão e
produção de solidariedades rebeldes;
- a possibilidade de um novo microcosmo, no
âmbito da relação Brasil-Angola, ultrapassando os enfoques
binários Norte-Sul, dando vozes a outros saberes do eixo
Sul-Sul;
- um olhar para a multiplicidade de
epistemologias e práticas políticas expressas por
diferentes vozes dos movimentos negros da era da
Emancipação nos EUA;
- a cidade brasileira de São Paulo,
enquanto território que apresenta pontos de encontro
privilegiados para investigar as possibilidades de
alianças e redes solidárias a favor da luta antirracista;
- a conceitualização da violência e sua
relação com a identidade negra, na comunidade quilombola
Água Preta, no Brasil, através dos pressupostos teóricos e
metodológicos da linguística cognitiva para auxiliar na
compreensão das teorias pós-coloniais;
- potencialidades e limites dos cursos de
Licenciatura em Educação do Campo na promoção da justiça
cognitiva camponesa;
- experiências das lutas territoriais dos
povos e comunidades costeiros como alternativas de
resistência e controle social da indústria extrativa do
petróleo marítimo para a proteção dos rios e mares;
- a teorização introspectiva dos povos
Maias peninsulares contemporâneos através do diálogo entre
vários autores pós-coloniais, com acadêmicos,
pesquisadores e poetas maias de diferentes períodos, que
permitam-nos dar diretrizes para gerar sociedades que
reconhecendo sua diversidade possam ser menos desiguais;
- o afrofuturismo como uma dimensão
emancipatória da arte, pensada enquanto espaço político,
social, económico, indissociável dos mecanismos de
transformação social para a construção de sociedades
pós-abissais;
- imagens propostas como uma figuração que
questiona a estética anestesiada e polida dos espaços
ocidentais contemporâneos; o fruto mofado é um cenário
propício para parar, escutar profundamente, contemplar
outras formas do existente;
- a forma como uma certa ideia de ética
aplicada ao trabalho de investigação académica pode ser
produtora de novas subalternidades;
- a investigação de uma série de temas como
a confusão ontológica, o direito à desilusão e a busca de
novos horizontes utópicos, concluindo com um argumento a
favor da literatura pós-colonial como uma metodologia
não-extrativista;
Esta edição da revista electrónica Cabo dos
Trabalhos pretende, assim, responder a alguns dos diversos
desafios académicos no âmbito das ciências sociais,
ampliando e fortalecendo o diálogo dos temas abordados.
* O programa de
Doutoramento em Pós-colonialismos e Cidadania Global
(Centro de Estudos Sociais e Faculdade de Economia da
Universidade de Coimbra) teve início em 2004-2005 e foi
acreditado pela Agência de Avaliação e Acreditação do
Ensino Superior (A3ES). O programa é oferecido
bienalmente, abrindo assim uma nova edição cada dois anos.
As mais recentes edições foram financiadas pela FCT.
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