Entrevistas
 

 
   

Entrevista a Alcir Pecora | 25 de setembro de 2015
conduzida e editada por Martina Matozzi e Nuno Lopes

Alcir Pecora é crítico literário e professor titular de Teoria Literária no Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas. É autor de inúmeras publicações académicas e livros, entre outros, Teatro do sacramento (Edusp/Editora da Unicamp, 1994); Máquina de gêneros (Edusp, 2001) e Rudimentos da vida coletiva (Ateliê, 2003). Tendo-se particularmente destacado pelo seu estudo da obra de Padre António Vieira, organizou dois volumes de Sermões (Hedra, 2000 e 2001).

Após ter marcado presença na Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa, no dia 24 de setembro de 2015, como apresentador da obra Patrimónios de Influência Portuguesa: modos de olhar (Walter Rossa e Margarida Calafate Ribeiro, Org., 2015) o Professor Alcir Pecora aceitou o convite de dois alunos do Programa de Doutoramento Patrimónios de Influência Portuguesa, concedendo-lhes um encontro, a 25 de setembro de 2015.

A entrevista que aqui publicamos revela a apreciação e a interpretação crítica que o Professor deixou deste livro, bem como a sua reflexão teórica acerca das questões do património que sempre nos interrogam. Na tentativa de uma melhor leitura e potencializando o seu valor didático, as perguntas foram formuladas de modo simplificado, evidenciando a negrito as palavras-chave.

NL A obra Patrimónios de Influência Portuguesa: modos de olhar, que tem como origem o programa de doutoramento Patrimónios de Influência Portuguesa, sustenta uma preocupação multidisciplinar e de natureza intercultural, desafiando a nossa ação sobre várias áreas científicas. Eu, por exemplo, sou formado em Arquitetura e a minha colega Martina em Línguas Modernas e Estudos Interculturais. O livro, realizado por docentes do doutoramento, surge como uma espécie de convocatória à divulgação deste conjunto de olhares e metodologias sobre o que é esta substância dos Patrimónios , no plural: do linguístico ao edificado, entre todas as variantes intrínsecas. Deste modo, a partir da sua perspetiva da Teoria Literária e, sobretudo, como alguém que vê “de fora” este programa e estes olhares sobre os patrimónios, pergunto-lhe como os analisa: se os considera inovadores, se as metodologias adotadas são uma evolução ou uma rutura com as áreas científicas tradicionais; no fundo, de que modo traduz tudo isto?

AP Eu penso que os textos do livro são muito atualizados nas discussões de suas áreas respectivas e o conjunto é muito representativo de um esforço de aggiornamento do tema do Património. Trata-se de uma tentativa séria de abordar, rever e organizar conceitos de vários campos disciplinares usualmente associados ao Património. Nesse sentido, o trabalho não pensa a monumentalidade dos objetos artísticos isolados, mas procura entender as suas implicações sociais e a sua disposição em favor de um futuro mais harmónico. Como alertam os organizadores, o livro não representa um gesto de nostalgia romântica, mas de ação intelectual cujo propósito é subsidiar políticas de ação favoráveis à cidadania. Cada um dos ensaios tenta reconstruir o sentido de “património” ou “patrimónios” no contexto pós-colonial. Para mim, o livro se constitui num verdadeiro tour de force , vale dizer, num esforço concentrado de especialistas em áreas muito diversas que reelaboram conceitos para dar conta dessa nova perspetiva, cujas respostas não são fáceis. O resultado desse esforço intelectual é uma coleção interdisciplinar cuidadosamente organizada no livro, que é composto por duas partes, separadas por uma entrevista dos organizadores com Eduardo Lourenço. A primeira parte discute criticamente os conceitos tradicionalmente afeitos ao património como memória, herança, identidade, comunidade, colonialismo, origem, influência, entre outros. A segunda trata das disciplinas envolvidas e dos novos instrumentos de investigação propostos por elas. A minha forma de agradecer intelectualmente este trabalho é falar dele do ponto de vista teórico, considerando a minha formação. Nesse âmbito levantaria três questões.

A primeira diz respeito ao facto de que, entendido da forma aqui apresentado, o património tende, em certa medida, a desmaterializar-se, passando a exigir uma teoria. Não se trata de conservar obras particulares, com qualidade estética ou histórica, mas de formular um campo teórico em que o património se reinventa, estendendo-se das obras aos conceitos, mais que dos conceitos às obras. Isso é perfeitamente lógico no contexto atual, mas é também iniludivelmente problemático, já que a própria interdisciplinaridade proposta é transferência das disciplinas para um espaço de modelagem teórica, em que a prática delas perde passo para a conceitualização metalinguística e metateórica. Se essa operação de modelagem é produtiva e pode levar a dissolver vários enganos da política patrimonial do passado, é também um processo de abstratização do património que, em determinados momentos, parece depender mais da imaginação do estudioso do que da existência histórica das formas e estruturas. E o problema da imaginação do estudioso é que ele imagina por paradigmas redundantes, de tal forma que a teoria é, ao mesmo tempo, nova e repetida.

Além da precedência teórica, os estudos deixam entrever uma perspetiva culturalista, usualmente edificante, isto é, que mostra boa vontade geral diante das relações assimétricas entre os povos recobertos pela ideia de influência portuguesa, e que favorece quase como parti pris as ideias de multiplicidade, pluralidade, diferença etc. Esse é um problema inerente aos estudos culturais: eles nascem de perspetivas que têm um grande sentido de justiça e de ética do tratamento das diferenças e pluralidades das diversas comunidades mas, além ou aquém dessa boa vontade, estão as obras, as cidades, as culturas que, em geral, existem na contradição, na concorrência por vezes insolúvel entre as partes e, mais ainda, no terreno minado da globalização. Se é óbvio que todos esses trabalhos não querem celebrar o passado nacionalista, também é importante que não incorram numa espiral de idealismo que se desprenda do solo duro em que todos vivemos e no qual invariavelmente predominam políticas muito parciais, senão muito toscas. Se não queremos que a questão do património seja uma epopeia do colonialismo, temos de estar muito atentos para não fazer dos estudos pós-coloniais uma épica da globalização.

Finalmente, é evidente o recuo da estética nessa nova perspetiva integradora do Património. Se cresce a atenção aos direitos e diferenças, diminui na mesma intensidade a nossa capacidade crítica de avaliação do que se postula como diferente. Que categorias seriam adequadas para um juízo estético quando o património se associa sobretudo à criação de comunidades plurais com direito a partilhar um espaço até então ocupado exclusivamente pelas culturas de um centro hegemónico que nunca foi compreensivo? Desse ponto de vista, fico a pensar se o custo das teorias da partilha deve significar necessariamente o sacrifício do estético, do objeto, da forma. Quando a forma deixa de ser decisiva, pode-se ter comunidades de direito, sociedades justas e que convivem bem, mas não há património artístico.

São questões que formulo não como crítica do livro, mas como desdobramento do momento tumultuado em que vivemos de que o Património – prova-o sobejamente o livro – revela os seus impasses, contradições e dilemas mais entranhados.

MM Quem hoje estuda os “patrimónios de influência portuguesa” encontra-se perante um arco temporal vastíssimo, uma multiplicidade de identidades, culturas e geografias, legados literários e edificados que carregam as memórias de uma história partilhada repleta de contradições e violências, que nos leva a contemplar e negociar com elementos parciais, silêncios e ruínas. Neste âmbito, conceitos como influência e história parecem constituir uma “constelação crítica” (Benjamin, 1991: 83) necessária no âmbito da investigação sobre patrimónios. Numa contemporaneidade “presentista” (Hartog, 2013), onde a identidade – usando as palavras de Stuart Hall – é uma “celebração móvel” (Hall, 1998: 12-13), de que forma aprecia as diversas reflexões sobre os “patrimónios de influência portuguesa” apresentadas no livro que acabou de ser publicado?

AP Penso que a questão dos patrimónios e da influência portuguesa obriga o livro a tentar “colocar o pé em duas barcas”. De um lado recusa a ideia de património como uma coisa unívoca, determinada pelo centro colonial e pensada como uma celebração de grandes monumentos da História portuguesa, dentro do conjunto tradicional do Estado-Nação. Há uma recusa clara, em todos os trabalhos, do que se entende normalmente por património, daí já a ideia de Patrimónios no plural. Os autores estão dispostos a imaginar isso como um conjunto aberto que se pode incorporar de diversas maneiras, origens, lugares, regiões, sítios, situações sociais.

Passa-se o mesmo com a escolha do termo “influência” para associá-lo preferentemente ao plural “patrimónios”. Ao mesmo tempo em que os estudos recusam uma ideia monolítica de “património monumental” e de “celebração do Estado”, não chegam a abdicar de uma ideia de “influência portuguesa”. Não se quer abandoná-la totalmente, abdicar de uma ideia de Portugal como origem e pensar numa dispersão radical. Mas admite-se uma negociação dessa influência, tentando considerá-la de modo não unidirecional a partir da matriz portuguesa. Há um esforço para transformar a ideia de influência na ligação mais leve possível, menos autoritária possível, mais disposta favoravelmente a sofrer interferências das antigas colônias, mas é evidente que nada nunca é tão leve assim. As contradições não são menores com o emprego desse termo, e isso reaparece, como um recalcado que retorna, em vários momentos do livro.

De modo geral, individuei no livro três linhas de leitura. Uma mais dura, de crítica do colonialismo ou de anticolonialismo. A segunda é uma linha mais ecuménica, onde os patrimónios estão em construção, não há uma identidade forte a ser preservada e o que se pode fazer é tentar estabelecer elos, construir um presente a partir das fragilidades. A terceira parece ser linha de alguns autores que tendem a produzir o discurso da conciliação centrado nos autores modernistas brasileiros; é o que ocorre exemplarmente quando recorrem à noção de “antropofagia” como resolução das contradições. Nesse caso, a ideia de “patrimónios” tende a significar a capacidade de importação da sua própria cultura, a disposição de assimilar tudo numa política de miscigenação, em que tudo se resolve, por assim dizer, num processo de osmose: o que é estrangeiro, logo vira brasileiro. A meu ver, francamente, há um bocado de mitologia aí: são integrações demasiado fáceis e rápidas, que se mostraram incapazes de dar conta das assimetrias e violências históricas, tanto as do passado como as do presente.

NL Numa aproximação ao meu projeto de doutoramento, o sistema defensivo de Goa estabelecido pelos portugueses entre a chegada à Índia e o século e meio que se seguiu, tenho desenvolvido diferentes olhares sobre estes patrimónios, que contemplam também diferentes culturas. Porventura transferindo-o um pouco dos domínios da sua área de conhecimento, verifico grandes distinções entre o contexto e a influência de Padre António Vieira na aplicação de políticas da Companhia de Jesus para os indígenas no Brasil e aquilo que se passara durante a ocupação portuguesa na Índia, onde a cultura e a religião se encontravam já fortemente enraizadas. Qual a sua reflexão a este respeito?

AP Sobre isso Vieira tem uma imagem muito conhecida. Dizia que nos jardins de Príncipes que conheceu – e ele visitou várias cortes da Europa – havia dois tipos de estátuas: as estátuas de mármore e as estátuas de murta. As estátuas de mármore eram feitas sempre com muita dificuldade: os escultores sofriam para conseguir a forma que pretendiam para as suas obras mas, assim que a conseguiam, como efeito do trabalho árduo que fazia sangrar as mãos, pela dureza do material e dos instrumentos, podia depois chover e trovejar, que as estátuas ficariam lá, intatas, para sempre. Por outro lado, as estátuas feitas de murta dobravam-se com facilidade aos instrumentos do escultor, que rapidamente lhes dava a forma desejada. Pois tal seria, segundo o Padre Vieira, a diferença entre os índios brasileiros e os nativos orientais. Os Brasis – como ele chama os índios – aceitavam tudo que lhes era pregado, dispunham-se logo a ajudar na missa, confessar-se, comungar-se… Toda a gente fazia festa a cada novo ritual católico que lhes era apresentado. No outro dia, porém, estavam esquecidos de tudo. E nem sempre se podia começar de novo, porque muitas vezes os índios nem sequer estavam lá, no mesmo lugar, pois eram nómadas. Este era o desespero dos padres, à facilidade da adesão à nova fé correspondia perfeitamente o esquecimento rápido de tudo o que tinham aprendido. Vieira diz que esta era a pior das experiências da conversão, a de ter diante de si gente que não oferecia contradição. Com os Japoneses ou os Indianos, que tinham culturas muito formadas, crenças enraizadas, era necessário disputar, argumentar fortemente, e quando se convenciam, então era para sempre. Quando finalmente acreditavam na fé católica, eles estavam igualmente dispostos a morrer por ela, sem abjurar da fé.

Tal é o que Padre Vieira dizia da diferença entre estas duas culturas: uma que apresenta fricção, resistência, mas que oferece uma base argumentativa sólida para a conversão; outra, que lhe parecia semelhante a falar ao vento. Conclui então que não pode haver conversão sem oposição. Mutatis mudandis, penso que os brasileiros continuam um pouco com este tom: o de recusar a ideia de confronto, de imaginar que os colonizadores viraram brasileiros rapidamente.

NL Para além de questionar a influência do referido sistema defensivo na constituição do território atual de Goa, a uma escala, importará compreender os elementos e as tipologias de cada estrutura, a outra escala, assim como os seus significados na contemporaneidade, para as pessoas que deles dispõem. Como diria Walter Rossa,“[…] o património apenas cumpre a sua função se for reconhecido por todas as partes: por quem o construiu, quem o usufruiu e quem prolonga a sua memória” (Rossa, 2015: 24). Pergunto-lhe: se a maioria destes objetos estão hoje ao abandono, significa que este património não cumpriu a função que aparentemente lhes estava destinada, ou será o conceito de cultura que ainda não determinou uma renovação gradual do conceito do património?

AP É difícil responder em abstrato, já que não conheço Goa. Mas posso fazer um correlato com a situação brasileira. No caso do Brasil, o impulso modernizador é muito maior do que o de recuperação das origens ou de manutenção e valorização dos passos de um trajeto histórico. Os eventos passados determinam pouco no ritmo de crescimento das cidades, que é sempre muito acelerado. As cidades, em parte, são acampamentos, sempre a construir-se e a deitar abaixo o que veio antes, como obsoleto. Os patrimónios históricos determinados por decisões oficiais não seriam capazes de deter esse impulso imediatista, desenvolvimentista, “presentista”. Na Europa, os pesos estão distribuídos de maneira diversa; não tenho ideia de como seriam na Índia. Pela minha experiência, na Itália e especialmente em Roma observo um equilíbrio admirável entre presença da herança antiga e a integração dela à vida presente. A porta do Pantheon , por exemplo, tem dois mil anos, é a porta original do templo. E ali, ao pé dela, mendigos dormem, turistas tiram fotos, atores se fazem passar por romanos antigos, vendem-se lembranças, e passam as pessoas todas da cidade. Há quem ache isso desleixo e que gostaria de isolar esses monumentos ou de pintá-los de dourado. Eu não. Eu amo esse tipo de promiscuidade temporal, a que não falta nunca o consenso da beleza e de haver ali uma obra de que se orgulhar. Ali, o antigo Pantheon e a urbe contemporânea estão no mesmo passo; as ruínas são parte da vida urbana do presente.

Pelo que percebi da leitura do livro, a maior parte dos autores estão menos interessados nas origens do que na possibilidade de ordenação harmônica do presente. A ideia geral de património ultrapassa em muito a ideia mais tradicionalmente conhecida de “monumento”. O grande interesse do grupo de investigação é o da constituição daquilo que Walter Rossa chama de “paisagem urbana do presente”, em que a vida das pessoas é preservada. Esses conjuntos harmónicos, que ele entende por urbanismo, estão muito mais associados à constituição de formas de vida contemporâneas interessantes do que à preservação dos monumentos do passado. Portanto, nesta perspetiva de patrimónios, o abandono dos monumentos parece não ser o acontecimento mais decisivo. Infelizmente, nesse mesmo movimento de utltrapassamento do monumento também parece haver a ultrapassagem da forma artística e dos assuntos estéticos. Terá de ser assim? É uma pergunta que deixo para os autores do livro. O escritor austríaco Hermann Broch na trilogia dos Sonâmbulos diz, numa certa altura, que quando tudo se perder, as ruínas serão o mais eloquente sinal de humanidade. Existem coisas que eu não gostaria de ver perdidas de modo nenhum. Por exemplo, pensando no caso da destruição do Templo de Bel, de Palmira, seria possível dizer que a destruição produzida ali é também um património? A destruição do templo poderia significar outro princípio de património? Não é uma ausência de património, mas uma nova cultura que se insere? É talvez possível pensar nesses termos, mas destruir Palmira para mim é imperdoável, porque justamente ali, e não em outro lugar, existe uma realização material única que não poderá jamais ser substituída. Para aquele templo já não pode haver outro princípio, outro presente. É o fim, pura e simplesmente, e a sua destruição tem de ser tratada como crime.

MM Padre António Vieira, enquanto escritor, jesuíta, pregador, político, missionário e, sobretudo, homem de ação, deixou, com a sua obra, um vasto legado que é fundamental para a perceção do contexto europeu e americano do século XVII. A partir da sua experiência como estudioso da obra do jesuíta, de que maneira é possível olhar hoje o património literário que este deixou?

AP O Padre Vieira tem uma produção imensa e intensa, com vários textos ainda inéditos. Mas se tivesse que escolher o que existe como obra definitiva, penso que o grande património vieiriano são mesmo os sermões. São o núcleo do que produziu e editou em vida. Embora ele tenha pregado durante muito tempo de sua vida longa, ele reescreveu toda a obra que nós conhecemos como sendo os seus sermões, nos últimos vinte anos da vida, por ordem do geral dos jesuítas, o italiano Giovanni Paolo Oliva, que era também ele um grande pregador. Graças a isso, talvez, ele apercebeu-se do alcance literário, e não somente místico da pregação de Vieira; assombrou-o a força de sua palavra, assim como a reconheceu a elite intelectual do período, que frequentava o salão da Rainha Cristina da Suécia, em Roma. Vieira, no entanto, ficou muito contrariado com a ordem do Geral, porque estava mais interessado na sua obra profética. Mas eu agradeço sempre ao Geral, a quem devemos essa escritura dos sermões, que é efetivamente escrita e não apenas transcrição de orações faladas, como parecem supor muitos. Eu conheci essa grandeza dos sermões de Vieira na minha própria pele, por assim dizer. É que, enquanto escrevia a minha tese de doutoramento, tive que viver diariamente esse sofrimento: ler o que Vieira escrevia e depois ter que conviver com as pobres frases que eu conseguia rascunhar a respeito do que lia. Foi uma longa e humilhante experiência. Vieira me obrigou a saber perfeitamente o quanto o meu português era miserável.

Embora considere os sermões o material mais monumental de Vieira, não penso neles como um monumento do passado. A escrita de Vieira me parece tão viva quanto a do melhor escritor contemporâneo. As alegrias que se podem ter diante de sua obra são agora tão extraordinárias como antes.

Mas eu tenho outra forma de lhe responder sobre a ideia de Património em Vieira, e ainda mais considerando a noção de pós-colonialismo ou descolonização. Nos meus estudos sobre a obra de Padre António Vieira, o verdadeiramente descolonizador, em termos intelectuais, não é falar da resistência que ele podia representar face à uma suposta dominação portuguesa ou europeia. Ao contrário, considero descolonizador dissolver disputas identitárias e nacionalistas em torno de sua obra. Certa vez, numa experiência que tive de dar aulas para docentes latinoamericanos de Universidades norteamericanas, enquanto eu falava de Vieira, alguém me perguntou um pouco decepcionado com a forma estritamente jesuítica com que o apresentava: «Mas quais as resistências que ele apresentava face a Portugal?» Eu respondi que não apresentava resistências nenhumas, ele se sentia jesuíta e português, conquanto vivendo longos períodos no império do ultramar. E depois, em outras ocasiões, não faltou quem me acusasse de entregar Vieira aos portugueses, em vez de reivindicá-lo para o Brasil, como patrioticamente fez Afrânio Peixoto e tantos outros acadêmicos brasileiros, mas como, se então não havia “Brasil”! Quem me colocava esta pergunta queria que se definisse uma identidade de resistência na grande obra de Vieira, mas isso é um tipo de postulação romântico-nacionalista totalmente estranha a ela. E eu sempre fico com a obra, não com as reivindicações valentes e patrióticas.

MM Pensando no que hoje poderíamos chamar património literário de influência portuguesa, como vê a confluência das suas heranças – isto é, o património de narrativas portugueses, de alguma forma fundadoras, que percorrem o que veio a ser historicamente a presença colonial portuguesa, bem como testemunham os processos de descoberta – e de que forma aprecia as suas reescritas – isto é, a revisitação em português desses mesmos textos herdados? No caso brasileiro, lembro-me, por exemplo, na Carta a El-Rei Dom Manuel de Pêro Vaz de Caminha e nas suas inúmeras reescritas, entre as quais a Carta às Icamiabas em Macunaíma de Mário de Andrade, mas também a canção de Caetano Veloso Tropicália.

AP A maior parte dessas reescritas são só paródia sem interesse. Você falou dos tropicalistas. Há uma recriação interessante de Caetano Veloso de um soneto do Gregório de Mattos: “ Triste Bahia! Ó quão dessemelhante / Estás e estou do nosso antigo estado! / Pobre te vejo a ti, tu a mi empenhado, / Rica te vejo eu já, tu a mi abundante […]”. A canção é bem feita, mas o sentido é muito diverso do original. Gregório de Mattos, ao contrário do que se costuma pensar na Bahia, era um homem próximo do poder, um jurista, não era um defensor da independência do Brasil, não era a favor da absolvição dos escravos, estava longe de ser defensor de negros. Quando falava de negro, aplicava-lhe as tópicas usuais desqualificadoras de priápico e bestializado. Quando imitava sons da fala dos índios e dos negros na sua escrita era sempre com efeito cômico e rebaixado. E muitos no Brasil tomam os poemas de Gregório como libertários e modernistas. Não eram, infelizmente.

Gostaria de alertar para um risco: o do autoritarismo de achar que uma visão politicamente correta tem direito de rasurar a história e censurar as obras do passado. O bom mocismo decreta sem remorsos que a história não importa. Na Itália, por exemplo, uma sociedadede – de que me esqueço justamente o nome – pediu que Dante deixasse de ser ensinado nas escolas com o argumento de que ele era homofóbico, racista e antissemita. Em Portugal, me admira que ainda não tenham feito o mesmo tipo de acusação em relação a Camões, em cuja obra não faltam exemplos de tudo isso. Aqui, no entanto, é preciso ser duro na defesa do monumento. Como pensar Itália e a história da Literatura Italiana sem Dante? Ou Portugal sem Camões? Declarar que essas obras não devem ser lidas ou que têm de ser censuradas é um autoritarismo incrível: aquele que decreta que a história não conta. Nesse sentido, a ideia de património é importante, porque não abdica da história, embora esteja interessada na integração desse passado num presente mais harmónico. A ideia da qualidade estética da obra não é necessariamente contraditória em relação a uma perspetiva mais progressista de compreensão do património.

MM Professor, no meu percurso de doutoramento no PIP, dediquei-me ao estudo da representação da experiência migratória na Literatura Portuguesa. Gostaria de saber se, do seu ponto de vista, na sociedade brasileira atual, com as suas múltiplas influências oriundas de diferentes e longínquas experiências migratórias, a imagem de Portugal continua a ser de “colonial”, porquanto sabemos da importância numérica da chegada em massa de portugueses ao Brasil – bem como de imigrantes de outras nacionalidades, como os italianos, por exemplo – no final do século XIX e ainda durante o século XX. Neste âmbito, qual a sua perceção do legado da emigração portuguesa no Brasil?

AP Esse património existe, claro, ainda que nem sempre reconhecido. Portugal, em especial, está em toda parte do Brasil. Rio de Janeiro, Minas Gerais, Bahia trazem a presença portuguesa bem à vista: quem quer que olhe a cidade percebe logo que o conjunto arquitetônico tem uma implantação portuguesa. Os prédios antigos de Ouro Preto são apenas o exemplo mais óbvio. A culinária de Minas Gerais e de todo o país, a não ser em regiões mais afastadas, é toda de base portuguesa. No Rio de Janeiro, a cultura portuguesa está presente em tudo, tanto no registo popular, como no erudito; por exemplo, mantém-se lá, viva, a tradição filológica dos liceus de língua portuguesa. A comunidade portuguesa é viva e atuante em quase todas as cidades brasileiras. Mas o Brasil tem essa coisa engraçada de nunca se pensar como tendo sido colônia. Talvez porque, numa certa altura, a imagem de Portugal como pátria de imigrantes pobres prevaleceu na imaginação do país sobre a de sede do império colonial. Mas não é apenas isso, pois até os estudos de história e literatura colonial são muito parcos no Brasil. Daria trabalho dizer porque, em termos rápidos, mas o fundamental está em que, a partir da independência, houve um grande esforço das elites para se vincular à França e ao que consideravam mundo progressista. Um forma de demonstrar a própria modernidade foi, portanto, obliterar a relação com Portugal. Até pouco tempo atrás, havia muito departamento universitário, no Brasil, que se julgava uma espécie de departamente francês no ultramar. Não sei se acham isso mais cômico ou mais triste. O certo é que o país nunca conseguiu ser exemplo de modernidade e perdeu a oportunidade de tornar-se consciente de seu vínculo mais estreito com o país de origem.

 

Referências Bibliográficas

Benjamin, Walter (1991), L’opera d’arte nell’epoca della sua riproducibilità tecnica. Arte e società di massa. Torino: Einaudi [Trad. de Enrico Filippini].

Broch, Hermann (1988-1989), Os Sonâmbulos. Lisboa: Ed. 70 [Trad. de António Ferreira Marques e Jorge Camacho].

Hall, Stuart (1998), A identidade cultural na pós- modernidade. Rio de Janeiro: DP&A [Trad. de Tomaz Tadeu da Silva e Guacira Lopes Louro].

Hartog, François (2013), Regimes de Historicidade. Presentismo e Experiências do Tempo. Belo Horizonte: Editora Autêntica [Trad. de Andréa S. de Menezes, Bruna Breffart, Camila R. Moraes, Maria Cristina de A. Silva e Maria Helena Martins].

Ribeiro, Margarida Calafate e Rossa, Walter (2015), Patrimónios de Influência Portuguesa: modos de olhar. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra.

Rossa, Walter (2015), "Patrimónios comuns", Jornal de Letras, Artes e Ideias, 16 de setembro, 24.